domingo, 10 de maio de 2009

A Escola

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 18.12.1992)


[A minha turma da 4ª classe]

Sempre que vou a Santarém e posso, percorro a minha rua devagarinho, para tudo observar. São muitas as recordações e até saudades. A minha rua não pode ser a mesma. Tudo mais velho – pessoas, árvores e habitações. Árvores secas, pessoas que vão desaparecendo, casas para substituir. Mesmo assim, ainda é possível acarinhar uma ou outra velhota que se delicia com a nossa presença, recordando por vezes factos passados, quando as mentes ainda funcionam bem.

Passei lá a minha infância, entrei e avancei na adolescência que pouco faltou para lá concluir.

***
Quando cheguei aos sete anos, iniciei a escolaridade, tendo sido matriculado na Escola do Pereiro, para onde iam os rapazes do MEU BAIRRO.

A escola ficava distante, era preciso atravessar o Largo das Amoreiras, recinto em frente ao antigo Hospital de Jesus Cristo, onde se encontravam algumas árvores (lembro-me bem das bagueiras) a maioria já caduca e se espalhavam alguns bancos simples, compostos por duas peças de ferro forjado que se fixavam cada uma à sua pedra. O assento e o recosto eram constituídos por duas fortes tábuas que se uniam às duas peças de ferro, por grossos parafusos.

Sempre ouvi dizer que numa entrada de toiros, do ganadeiro Caroça, de passagem, arrancaram todos os que lhe apareceram pela frente!

Depois, era a Fonte do Boneco, mesmo à curva da estrada para Lisboa, onde se abasteciam os necessitados das redondezas e bebíamos mesmo sem sede, só pelo prazer de abrir a torneira e entornar a água!

A partir daí, havia vários caminhos, uns iam pela Rua de João Afonso e cortavam ao Canto da Cruz, outros pela parte mais periférica, pela Av. António dos Santos.

Era longo o trajecto para miúdos também pequenos.

Nos primeiros dias a minha irmã acompanhava-me, depois aprendi o caminho e ia com os colegas do MEU BAIRRO.

O meu bairro crescia, novos arruamentos e edifícios iam aparecendo e estes já com mais de um piso, nalguns casos.

O número de alunos naturalmente que começou a aumentar e houve necessidade de construir um edifício escolar para o bairro, o que se fez ao fundo da minha rua, no meio de um olival. De quatro salas em dois pisos e amplo recreio.

Fui um dos alunos que a inaugurou, frequentando a 3ª classe, penso que em 1947/48.
Agora, os rapazes do MEU BAIRRO já tinham escola perto, mas as meninas continuavam a ir para a do Pereiro ou do Salvador, já que nessa altura e até aos nossos dias, eram impossíveis as escolas mistas!

Mas nem todas as crianças que a frequentavam estavam perto. Havia quem vivesse bastante distante, a quilómetros, como era o caso do meu colega Vicente que morava num casal, muito para lá da Carreira de Tiro. Outros moravam no então Bairro Salazar, cujo acesso a distanciava. Falar da minha escola é principalmente falar do meu professor e dos meus colegas. A fotografia que possuo da minha 4ª classe, possibilita-me recordá-los a todos, já que o professor, esse nunca esqueceria.


[A escola dos Combatentes depois de ter sido aumentada]
Conto quarenta e quatro na foto mas tenho a certeza que faltam pelo menos dois, o José Joaquim e o Rogério – seria pelo menos uma 4ª classe de quarenta e seis alunos!
Hoje dava para dois professores, ainda que não haja qualquer paralelismo de programas, como é natural.

Não estou a dizer que era pior ou melhor no meu tempo, estou a afirmar que era diferente.

Um professor de ensino primário ganhava muitíssimo mal. Valia-lhes a circunstância de a maioria serem casados com colegas.

Quem não conhecia na época a figura do meu professor, o Prof. Agnelo, de seu nome completo, Agnelo da Silva Lázaro, mas que os seus alunos conheciam por Bintóito devido à sua pronúncia de beirão, pois era natural de Celorico da Beira, Beira Alta!
Era alto e forte, de feições gradas, testa alta, cabelo liso para trás, com largas entradas – um homenzarrão. Sempre o conheci arrastando um pouco uma das pernas, ou por qualquer deficiência motora ou por tique.

Tinha uma voz em consonância com o corpo e um pouco atrapalhada. Tratava todos os seus alunos por “rapaz”.

Ninguém se lembra do Prof. Agnelo faltar à Escola ou chegar atrasado! Os seus alunos entravam sempre mais cedo e saíam sempre mais tarde e não havia recreio! De princípio custava, mas depois entrava no hábito.

Aos sábados, era altura para outras actividades. O Prof. Agnelo então não fazia ditados, exercícios de aritmética, explicação da História de Portugal ou de qualquer outra matéria do programa, mas não ia com os seus alunos para o recreio fazê-los marchar e “saudar” de braço estendido.

O meu professor aproveitava para nos ler alguns trechos de autores portugueses que pudéssemos compreender e fundamentalmente conversar com os seus rapazes e contar muito da sua vida. Foi assim que soubemos da sua terra natal, que tinha ficado órfão de pai muito novo, que a mãe dedicava-se à agricultura, trabalhando de dia e de noite, que fez o curso na Escola do Magistério Primário da Guarda com 19 valores, indo a sua predilecção para a Matemática.

As palestras tinham sempre um cunho educativo com realce para a honestidade, altruísmo, coragem, abnegação e outras qualidades que devem ser apanágio do Homem. A dignidade e igualdade do Homem, esteve sempre no seu horizonte.

Na minha 4ª Classe, dos pelo menos quarenta e seis alunos, só treze (cerca de 28 %) foram opositores ao exame de admissão ao liceu.

O Prof. Agnelo deu a estes ainda (se possível) uma melhor preparação.
Depois de sairmos já tarde da escola, passávamos por casa para merendar (o que fazíamos por vezes pelo caminho) e lá íamos para a sua casa que ficava mesmo ao fundo das Escadinhas do Milagre.

Já viram treze crianças entre os dez e os doze anos numa divisão que eu penso ser a casa de jantar do agregado familiar? Era lá que fazíamos os pontos (alguns já muito gastos) das colecções que o professor tinha para ganharmos prática. Tudo era por ele corrigido.

Por essa altura era hábito cobrar por este trabalho, por cada aluno, entre 120$00 e 150$00 mensais. Pois o Prof. Agnelo, que vivia exclusivamente do seu trabalho de funcionário público e tinha uma das filhas na Universidade, não cobrava a ninguém um tostão!

Foi assim na minha 4ª classe, penso que procedeu sempre da mesma maneira.

Rejeitou enquanto pôde o lugar de director da escola. É evidente que também não havia interesse em que ele exercesse o cargo. É que o Prof. Agnelo era um democrata.
Por alturas das eleições presidenciais de 1949 e onde pontificava como opositor ao regime, O General Norton de Matos, o Prof. Agnelo foi apoquentado pela PIDE. Lembro-me muito bem do que se passou na sala de aula, pelo que é natural que os meus colegas também se lembrem.

Não sei quantos anos leccionou em Santarém, mas muitos foram – várias gerações lhe passaram pelas mãos – tem ex-alunos a desempenharem as mais variadas profissões, uns continuando na sua cidade, outros espalhados pelo país fora.

O Prof. Agnelo, após a aposentação, regressou ao seu torrão natal onde terá passado os últimos anos de vida. Depois da sua saída, ainda obtive notícias dele uma vez.

Ainda se chegou a esboçar um movimento para homenagear o professor por parte dos seus alunos mas infelizmente não passou disso.

Se há professores do ensino primário que merecem essa distinção por parte dos seus alunos, ninguém mais do que o Prof. Agnelo o merecia – igual sim, mais, não.

É uma dívida de gratidão que o seu volumoso número de alunos lhe deve e que, apesar de tanto tempo passado, ainda lhe podem prestar esse tributo – mais vale tarde que nunca – diz o aforismo popular.

Apesar de não ser natural de Santarém, tenho visto nomes em placas toponímicas da cidade que ficam muito aquém do valor do seu.

AGNELO DA SILVA LÁZARO – Prof. do Ensino Primário, era segundo a nossa opinião, um nome que devia figurar na toponímia escalabitana.

Não será preciso dizer que o Prof. Agnelo era duro, como a época e as circunstâncias impunham, mas nunca foi selvagem. O Prof. Agnelo castigava como um pai, nunca espancou ninguém.

(1) – Tentativa de identificação dos alunos:- 1º plano, da esquerda para a direita: Braga, Hernâni Cardoso, Adelino, N.N. João, Neto, Zé António Lázaro (fal.), Carlos (Carró Velho) e Cadima; 2º plano: Manuel João, Pacheco, Mário Leal, N.N. Joaquim José, Pescador, António Trindade, António Miguel, Virgílio Cardoso, José Torgal(fal.), António Minderico e um pouco mais acima, Vicente; 3º plano (de pé) : Capelo, Serralha, Orlando Carvalho, Júlio Leal, Vale., Carlos Mariano(fal.), Emídio, Cascalheira, Gaivoto, Francisco, 4º e último plano : N.N., N.N., Lúcio (fal.)(o meu parceiro) Fernando Trindade, José, Romão, Renato, Victor Vasconcelos, Júlio Manuel, Silas(fal.) N.N., Faustino e Figueiredo.