segunda-feira, 15 de junho de 2009

Higiene

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 29.01.1993)

A organização destes despretensiosos escritos, na sua maioria, além de alguma capacidade de retenção na memória, tem a ver com a impressão causada a cada ser por coisas e factos. Todos nós somos diferentes, cada qual tem a sua sensibilidade.
Ao vasculharmos o sótão do nosso ser, procurando encontrar velharias, à medida que vão aparecendo, vamos arrumando-as no “arquivo” que consideramos mais adequado.
Foi assim que destes pequenos nadas construímos a MEMÓRIA de hoje, produto da sintetização de seis assuntos.

Iremos então referi-los, fazendo avivar a memória dos que os conheceram e tentando explicar aos jovens que lá vivem e se por acaso nos lerem, como é que a vida aí decorria.

CARROÇA DO LIXO

Logo pela manhã as donas de casa punham às portas os caixotes de madeira onde tinham recolhido o lixo do dia anterior.

Era completamente proibido deitar o lixo na “ribanceira”, ao fundo da minha rua e a polícia procurava controlar a situação, lembrando-me de algumas situações caricatas com a identificação de pessoas e a tentativa de levantamento de auto para o pagamento da competente multa.

Isto acontecia quando a carroça do lixo passava e o caixote não era posto à porta por qualquer circunstância.

A carroça era puxada por macho ou mula, tapada abauladamente e onde se movimentavam pelo menos duas portas (talvez quatro, duas de cada lado) conforme a necessidade. Pintadas de cinzento, na parte da frente possuíam uma sineta fixada em peça maleável que, com o andar do animal, provocava um tilintar que chamava a atenção principalmente daquelas que ainda não tinham posto o caixote à porta.

Na retaguarda da carroça não faltava a sigla C.M.S., identificativa do município.
Havia muita gente que só punha o caixote na rua quando a carroça aparecia, a fim de evitar que os cães o espalhassem.

O condutor vestia farda municipal de que se destacava o boné, igualmente com a identificação do município, gravada em chapa metálica.

O condutor ia pegando nos caixotes, despejando-os na carroça, tendo sempre um toque final para que nada lhe ficasse dentro e isto sem mandar parar o animal que tinha um passo cadenciado à medida das necessidades do seu condutor.

É uma imagem que ainda não desapareceu da minha memória!

VARREDORES

Estes funcionários menores vestiam uma espécie de blusão aos quadradinhos azuis e brancos e que tinha bordado a vermelho a sigla municipal já referida.
Com as suas vassouras ramalhudas de giesta iam juntando o lixo que deitavam em carros de madeira de forma cúbica, igualmente pintados de cinzento e que eles próprios conduzia.

LIMPA SARJETAS

Vestia como os anteriores. Transportava uma bilha de folha zincada, chave para as caixas de boca-de-incêndio, um pequeno cano levemente curvo e um instrumento de ferro, com um cabo e em cuja extremidade se fixava folha estreita, rectangular e abaulada nos dois vértices consecutivos mais distantes.

Com o instrumento referido e nos dizem chamar-se rodo, retirava a pedra, areias e qualquer objecto que se encontrasse na sarjeta. Em seguida, com movimentos bruscos atirava a água para a canalização geral, fazendo-a transpor o nível separador.

Depois, dirigia-se à caixa da boca-de-incêndio (havia uma no prédio em que eu morava) que abria, colocava o cano, enchia a bilha que ia deitar na sarjeta. Ficava assim o trabalho feito e das sarjetas não provinha mau cheiro.

Destes trabalhadores lembramo-nos de um já bem entrado na idade, baixo, franzino e curvado que executava o trabalho com grande rigor. Dizia-me o meu pai que tinha sido combatente na Guerra 1914/18.

Não era homem de falas, a rapaziada conhecia-o bem e mantinha-se sempre a uma determinada distância, não fosse o diabo tecê-las!

A miudagem não gostava dele, era vê-lo partir ia meter na sarjeta aquilo que ele tinha tirado e que esperava pela recolha!

RUSGA AOS CANÍDEOS

Mal assomavam ao cimo da minha rua, o alarme era lançado e corria célere pelo MEU BAIRRO. Aí vinham os homens da Câmara com redes ao pescoço para apanhar a canzoada.
Havia cães vadios, cães que tinham dono mas não tinham licença; os licenciados, poucos, e os que tinham açaimo, ainda menos. O meu cão chegou a ter um mas não o aguentava, talvez por falta de hábito.

A rapaziada corria pelas ruas procurando encontrar os seus cães, pondo-os a recato, prendendo-os no quintal ou em casa. A seguir, socorriam-se os vizinhos e amigos para depois procurar assistir ao espectáculo da caça.

Os funcionários municipais, muitos deles varredores, estavam evidentemente no cumprimento de um dever. Eram sempre apoiados pelo polícia que estivesse de serviço na zona; pensamos mesmo que sem ele não se atreviam a executar o serviço.

Aquela gente para nós e também para a maioria dos adultos, vinha numa missão que detestávamos. Não está em causa o fim mas a maneira de o alcançar.

O espectáculo era degradante e rocambolesco. Os cães vadios, aqueles que não tinham ninguém que os protegesse, raramente eram apanhados, a não ser já velhos. Além de reconhecerem à légua as redes, pisgavam-se logo e quando eram surpreendidos pelo cerco, faziam fintas mirabolantes.

Lembro-me de uma cadela que, em caso de necessidade, saltava por cima da rede para se safar.

Os homens que faziam este trabalho ingrato eram normalmente já entradotes na idade e consequentemente tinham pouco mobilidade.

Quando os cães se safavam, era a alegria, havia chacota mais ou menos declarada e os adultos mais afoitos, de passagem largavam a sua “boca” e seguiam não fossem parar ao xelindró por causa disso.

Os apanhados eram presos pelo pescoço e ficavam à guarda de um dos homens. Uma vez no canil havia um prazo para o resgate após o pagamento da competente coima e cumprimento de qualquer outra obrigação, se fosse necessário. Os outros eram abatidos.

O meu Zaire foi lá parar uma vez e não larguei o meu pai enquanto não o foi buscar. O reencontro foi uma alegria.

Nessa altura e não sei porquê, era hábito pôr aos cães nomes de rios:- Tejo, Mondego, Zaire, Guadiana e Tui (Venezuela) são alguns dos que me lembro. Também havia muitos Pilotos, Farruscos e Dianas. (1)

Como são hoje eliminados os cães vadios? Confesso que não sei mas foi espectáculo que nunca mais vi.

REGA DAS RUAS

Nos meses de Verão aparecia o autotanque dos Bombeiros Municipais que lentamente percorria todas as ruas do MEU BAIRRO, lançando para ambos os lados da rua vários esguichos, todos de intensidade diferente pelo que as ruas eram lavadas e ficavam frescas.

Como facilmente se compreende a presença do carro da rega, como nós lhe chamávamos, causava euforia na miudagem. Nessa altura, grande parte andava descalça e aqueles que o não andavam, iam pôr os sapatos em casa. Assim, podia-se brincar à vontade!
Era bastante complacente o condutor da viatura que também tinha a seu cargo a regularização dos esguichos. De vez enquanto lá vinha um mais forte que era aquilo que a rapaziada queria. A secagem era rápida.

Aquilo constituía grande brincadeira para aqueles miúdos que na sua grande maioria não conheciam a praia e quando isso acontecia era na maior parte das vezes por intermédio da Colónia Balnear da Junta de Província do Ribatejo e situada na praia da Nazaré.

Os tempos eram outros!

LIMPEZA DAS ÁRVORES

Quando na época própria vinha com escada ao ombro o trabalhador camarário poder as árvores da minha rua, era uma alegria!

Ainda hoje recordo a figura do limpador. Homem relativamente novo, baixo, entroncado, cara bolachuda e quase não falava.

Subia a escada de madeira que procurava colocar com segurança e, de serrote em punho ia desbastando, deixando as árvores de maneira que não avançassem muito para não prejudicar paredes, telhados e fios condutores de corrente eléctrica.

Mais atrasada, uma carrocita carregava as varas que iam caindo pela acção do serrote. Eram elas que provocavam a nossa alegria pois as suas curvaturas constituíam pretexto para se organizarem equipas de hóquei em patins... sem patins.
Umas vezes jogava-se em ringues de terra batida, outras em quintais cimentados.
A disputa pela melhor vara provocava por vezes o confronto físico. Nos jogos, quando menos lestos nos desvios, era sabido que chegávamos a casa com escoriações nos dedos, nas mãos e nas pernas. No outro dia, os prélios continuavam agora com novos estiques, ora porque se tinham partido nas refregas, que mudavam aos cinco e acabavam aos dez, ora porque tínhamos arranjado melhores exemplares.

Não me lembro do podador se ter aborrecido connosco, que seringávamos à sua volta todo o dia. Era um bom homem.

A mania de sermos Jesus Correia, Correia dos Santos, Raio, Sidónio, Edgar. Emídio ou Cipriano que nessa época davam cartas no hóquei mundial, só acabava quando a poda terminava e os aléus se partiam.

E as bolas?

Só havia uma solução, surripiá-la num jogo de “bonecos”.

Aqui fica mais esta MEMÓRIA DO MEU BAIRRO que girou à volta de coisas muitos simples.

(1) – Hoje, opta-se, na maior parte dos casos, por nomes de pessoas, mas não conheço o uso de nomes de familiares próximos.