quarta-feira, 8 de julho de 2009

Figuras Varzeenses - O Dr. Silva Pereira, pedagogo e poeta


(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 10 DE MAIO DE 1991)
Todas as terras por mais insignificantes que sejam, possuem sempre, no decorrer dos tempos, filhos que se destacam, quando não a nível nacional, a regional ou local.

É verdade que nos grandes centros urbanos a quantidade está na razão da sua população, mas também é verdade que de pequenas aldeias têm saído grandes figuras nacionais.

A freguesia da Várzea não constitui excepção, tendo também as suas figuras, umas pelo nascimento, outras por adopção.

Falaremos hoje do Dr. Silva Pereira, de seu nome completo, António Augusto Coelho da Silva Pereira que nasceu no pequeno lugar da Fonte de Vilgateira a 6 de Julho de 1881,sendo filho de Francisco Augusto e de D. Maria Augusto e irmão do Cónego, Joaquim Augusto, professor do Liceu de Santarém e director do Colégio da mesma cidade, figura bem conhecida na época.

Iniciou, tal como o irmão, os seus estudos no Seminário de Santarém.

Além da licenciatura em Letras, pensamos que completou, segundo na altura nos informaram, o curso da então Escola Médica do Funchal de que nunca fez uso.

Leccionou durante muitos anos, entre outras, a disciplina de Português no Liceu “Jaime Moniz”, daquela cidade e onde também veio a exercer as funções de reitor. Aí casa com uma senhora madeirense.

Foi poeta de merecimento vencendo alguns jogos florais a que concorreu, como aconteceu com uns organizados pela ex-Emissora Nacional.

Parece que o Dr. Silva Pereira colaborou com a imprensa madeirense onde terá publicado alguns dos seus versos.

Do seu valor literário fala-nos o Jornal do Funchal de 9 de Julho de 1939, donde registámos os seguintes comentários na coluna “Letras Portuguesas”.

“Livros de versos, há alguns anos que não aparecem em Portugal com tanto valor. É um poeta de raro engenho, esmerada cultura literária, fina sensibilidade e vincado temperamento artístico.

Servindo-se das maravilhosas qualidades melódicas e plásticas da nossa linguagem corrente, sem o disfarce enganoso de termos retumbantes ou raros, dá à poesia nacional interpretação e vida nova , à margem das correntes e escolas modernistas. Espontâneo, natural e simples sem ser trivial nem redundante, sem pretensões nem nefalibatismos, modela a sua arte poética com uma linguagem vernácula, colorida, animada e graciosa.

Os seus versos, de pensamentos nobres e conceitos profundos têm um inusitado ritmo dentro da sua beleza estrutural, que prende o leitor à sedução da sua harmonia.

Os versos do Dr. António Augusto definem bem a sua predilecção pela história e lenda”.

Da sua bibliografia conhecemos: - Poesia Vária, 1939, As Rosas da Rainha, O Liz, 1939 ambos editados naquela ilha do Atlântico e Luz e Flores (Algumas saudades e martírios) Líricas, 1946, editado em Lisboa, seu último livro dedicado postumamente a seus pais e que tenho o prazer de possuir um exemplar, que guardo como relíquia.

***


Após a aposentação, regressou ao torrão natal que muito amava, refugiando-se na habitação onde nasceu, que mandou restaurar e na propriedade rústica contígua, cheia de vegetação e onde corre um ribeiro.

Numa papelada que nos chegou às mãos, encontrámos, entre outros, um poema do Dr. Silva Pereira, escrito pelo seu próprio punho, que pensamos ainda inédito.

O ROSTO DA SAUDADE

Quanta vez, me surpreendo eu, só.
A resolver, buscando exíguos nadas,
O pobre meu passado, em cinza, todo é pó!

E após mim, vejo um trilho abandonado,
Que a seca folha cobre, e as ervitas mirradas...
Trilho triste, sem curva graciosa
Sem uma sombra, uma árvore, uma rosa,
Um miradouro de atraente vista,
Mas tudo, lá, no fundo, a avultar imprevista,
A casa pequena em que eu nasci:
-Branca, como no dia em que eu parti;
Cerejeiras em flor, azul e sol,
Um ribeiro, uma fonte, um rouxinol,
O sítio lindo, a Paz sorrindo, a flor abrindo...

E a olhar, a olhar, como quem espera alguém,
-Sempre a Saudade, com feições de minha mãe.


No poema, o poeta mergulha no passado e vai encontrar como principais referências, a casa em que nasceu e em quatro versos mostra-nos como era e onde se situava, “o sítio lindo, a Paz sorrindo, a flor abrindo...” “O rosto da saudade”.

Mais de meio século tem este poema que segundo pensamos, só agora saiu da gaveta – a memória do autor que nos perdoe o atrevimento.

Tudo o que descreve se mantém, excepto as cerejeiras que já não conhecemos e foram referidas pelo Dr. Francisco Câncio, num dos seus livros pois que, quando rapaz, lhe apanhava o fruto nas ocasiões em que acompanhava o Cónego Joaquim Augusto nas visitas que fazia a sua mãe.

O Dr. Silva Pereira deambulava pela propriedade, vestindo como homem do campo, não esquecendo a bota cardada. Brincava à agricultura e extasiava-se com a vegetação.

Raramente saía dos seus domínios, era contudo certa a ida mensal a Santarém, em transporte colectivo, receber a pensão de reforma. Então vestia à senhor dos princípios do século com o seu chapéu de coco, relógio de bolso e bengala de castão de prata.


Conhecemos bem o Dr. Da Fonte como localmente o conheciam e que visitávamos acompanhando o nosso pai, quando éramos rapaz já de barba.

Rondava ele então os oitenta anos e mostrava-se rijo. Muito obsequiador, como é o homem do bairro, nunca podíamos sair sem nos sentarmos à mesa. Lembramo-nos das azeitonas do casal, com um tempero muito característico, do chouriço assado, das maçãs reinetas assadas no forno e dos bolos de mel, receita trazida da Pérola do Atlântico.

Tratou-nos sempre por menino.

Apesar dos anos passados, ainda temos na mente a figura do Dr. Da Fonte, no ouvido o timbre da sua voz pausada e muito firme e na lembrança alguns factos passados.

Faleceu a 26 de Junho de 1967, com 86 anos, ficando sepultado no cemitério da freguesia onde nasceu, como foi sempre seu desejo.