sexta-feira, 18 de setembro de 2009

O Hospital de Jesus Cristo e a sua igreja

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 26.03.1993)




A MEMÓRIA de hoje é um pouco diferente das que os nossos leitores estão habituados, mas pensamos que tem todo o interesse, ainda que não haja praticamente nada de inédito.

O nosso bairro, novo como é, e fundamentalmente destinado ao povo, às classes trabalhadoras, não tem no seu interior monumento para mostrar. Contudo, o bairro construiu-se a partir da retaguarda de dois antigos conventos, o da Ordem Terceira de S. Francisco e o das Donas, que tinham sido edificados para além das muralhas do velho burgo, “em distância de setenta passos, quase a poente”, no dizer do Padre Inácio, o autor de “Santarém Edificada” e a que já nos referimos quando abordámos a toponímia.

Os dois seculares monumentos que têm sofrido variadíssimas transformações com o decorrer do tempo, são as balizas da Avenida dos Combatentes, acabando também por se poderem considerar, integrados de certa maneira no MEU BAIRRO.

Ao Hospital de Jesus Cristo, que me lembre, recorri duas vezes, por dois cortes, um, na língua (!) e o outro num pé. Nesta última situação não esqueço que foi o Sr. Manuel Machado, que foi futebolista de “Os Leões”, que me tirou do colo de minha mãe e me levou ao banco do hospital, onde me laquearam duas artérias. Já se passaram quase cinquenta anos!

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No local da “Madalena” ou do “Sítio” existia o Palácio da Mitra (medieval) que foi o Paço dos Arcebispos de Lisboa.

Tramou-se aqui uma das conspirações contra D. João II, planeando eliminar o rei, prender o Príncipe D. Afonso, herdeiro do trono, que veio a falecer da queda de um cavalo ocorrida nas redondezas, e a subida ao trono do Duque de Viseu, D. Diogo, primo do monarca.

O rei, ao ter conhecimento da tramóia, veio a apunhalar o Duque de Viseu, seu cunhado, nos Paços de Setúbal (1484). Dos restantes conjurados, o bispo de Évora, D. Garcia de Meneses, natural de Santarém e instigador da conjura, foi preso no Castelo de Palmela onde veio a morrer pouco tempo depois, envenenado; seu irmão, D. Fernando de Meneses e D. Pedro de Ataíde, foram logo degolados; D. Gutierres Coutinho, Comendador de Sesimbra, envenenado na torre do Castelo de Avís e D. Fernando de Ataíde, esquartejado.

D. Fernando da Silveira, que escapou para França, acabou por ser morto em Avinhão onde o alcançou a implacável vingança real. Isaac Abravanel, um dos mais ricos judeus da Península foi acusado de financiar a conjura e condenado à morte, mas conseguiu sair do país.

Em 1590, os frades Terceiros de S. Francisco que ocupavam o Convento de Sta. Catarina dos Olivais, no sítio das Assacaias – Saúde, a primeira casa dos Terceiros em Portugal, rogaram ao arcebispo de Lisboa, D. Miguel de Castro, que lhes permitisse a transferência para aquele local, desejo que foi atendido e depois sancionado pelo Senado da Vila. Ocorre isto por volta de 1615.

Aconteceu que a essa transferência se opõem as Dominicanas do Convento vizinho, com base num Breve Pontifício que impedia a fundação, nas proximidades de outra mansão conventual. O processo arrastou-se por cerca de três anos pois só em fins de 1617 os frades puderam ocupar a sua casa.

Com a implantação do liberalismo, foram extintas as Ordens Religiosas em 1834 e desalojados os frades da Ordem Terceira de S. Francisco.

O Hospital de Jesus Cristo, fundado por João Afonso de Santarém e ao qual se tinham anexado, no reinado de D. Manuel, todos os outros que existiam em Santarém, em número de quinze, vem ocupar este lugar, deixando aquele em que se encontrava, ao “Canto da Cruz” e onde se encontra hoje o Teatro Sá da Bandeira.

Em 1987 o novo hospital distrital entra em funcionamento na zona de São Domingos pelo que o antigo foi desactivado. Nas instalações desenvolvem-se várias actividades no campo assistencial e de saúde.

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A igreja chamada do Hospital de Jesus Cristo, foi fundada pelo arcebispo de Lisboa, D. Miguel de Castro e as obras decorreram entre 1615 e 1649. Nesta última fase a cargo de Joana Coelha, natural de Cabo Verde e viúva de um capitão de Cacheu.

É de uma só nave. Fachada de “estilo chão” e disposta em três andares, duas torres sineiras laterais de base quadrangular e unidas por balaustrada.

O portal principal possui colunas clássicas. As outras duas portas, que ladeiam o portal são bastantes mais pequenas e de frontão interrompido, com volutas.

As nove janelas da fachada são decoradas por frontões, ora triangulares, ora curvos.
A capela-mor tem abóbada de meio canhão.

Algumas pinturas do século XVII.

Paredes cobertas de azulejo em branco e azul.

Na parede da capela mor está o túmulo de Pedro Escuro, companheiro de D. Afonso Henriques e por este incumbido de guardar a porta de Valada, quando da conquista aos mouros.

Diz a lenda que o alcaide mouro que governava a cidade em nome do rei de Sevilha, raivoso da derrota, promete voltar com reforços e então, pagar-se-ia. Pedro Escuro, responde-lhe: - Iedes e viredes e aqui me acharedes ou morto ou vivo.

Pedro Escuro não faltou ao que tinha prometido. Por testamento ordenou que ficasse sepultado junto à porta de Valada, onde ele próprio mandou edificar uma ermida e um hospital que se designou do “Reclamador e Palmeiro”.

Muitos anos depois é que os restos mortais do cavaleiro foram removidos para este jazigo.

Vítor Serrão classifica a Igreja do Hospital de Jesus Cristo como excelente espécime das peculiaridades arquitectónicas do “estilo chão” português, pela elegante projecção da sua frontaria, concebida em solução maneirista numa altura em que o resto da Europa se seduzia já pela ostentação do Barroco proselitista.
É considerado monumento nacional desde 1947.

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BIBLIOGRAFIA

Vasconcellos, Padre Ignácio da Piedade e – História de Santarém edificada, 1740
Lemos, Eugénio de – Santarém. Lenda e História, 1940
Arruda, Virgílio – Santarém no Tempo, 1971
Luís Montez Matoso, historiador e jornalista, 1980
“A propósito do Paço dos Arcebispos e do que dele há a esperar”, in Correio do Ribatejo de 27.03.1987
Serrão, Vítor – Santarém, 1990