segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O lume

(PUBLICADO CORREIO DO RIBATEJO DE 08 DE ABRIL DE 1993)

Quando pensei pôr em prática uma “ideia” que me acompanhava há bastante tempo, pelos cálculos que fiz, as MEMÓRIAS dariam para abordar uns doze assuntos. Como podeis verificar, esse número já lá vai e os assuntos ainda não esgotaram, mas já começo a sentir o seu término.
Tem chegado ultimamente ao meu conhecimento, que as MEMÓRIAS começam a ter um maior número de leitores assíduos que “reclamam” conhecer aquelas que foram publicadas mas que não leram, por falta de conhecimento.
Veremos quantos assuntos ainda conseguiremos encontrar no sótão das nossas recordações.

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A primeira dificuldade que encontro para o desenvolvimento do tema de hoje, começou pela escolha do título.
Qualquer dicionário indica como sinónimos de lume, fogo, luz, fogueira e clarão.
Se lume e fogo são sinónimos, na minha infância, que passei no MEU BAIRRO, ouvia sempre dizer: - vou acender o lume. Já maduro e nas voltas que a profissão motivou, na região em que mais me enraizei, ouvia dizer: - vou fazer o fogo.
Reparei que os fumadores quando necessitam, pedem lume ou fogo, conforme os seus hábitos, o uso das regiões de origem.
Entre as duas designações, optei naturalmente pela da minha origem – aquela que o MEU BAIRRO me ensinou.
Mas afinal, o que é que o lume tem para dizer ou recordar?!
O leitor é capaz de ter razão, mas eu tenho a impressão que talvez consiga despertar o seu interesse e levá-lo a concluir a leitura deste escrito que certamente não será longa. Depois, ajuizará.

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O lume, purificador e divinizado. A sua pureza era considerada pelos Antigos como o mais nobre dos elementos, o que mais se aproximava da divindade, e como que a imagem do astro do dia.
Na antiguidade greco-romana, o fogo não se deixava apagar em cada casa. De dia mais vivo, crepitava, de noite amortecia mais e ao raiar da manhã, “limpava-se” da cinza e novamente vivificava.
Os dois meios iniciais da produção do fogo foram a percussão e o atrito.
Em fins do século XVIII os habitantes de Azinheira (Rio Maior) ocupavam-se na manufactura de pedras para isqueiros que dali saíam para todo o lado e exportavam-se para o país vizinho.
São muito variáveis as aplicações do lume (fogo) que vão desde a iluminação à preparação dos alimentos. É fundamentalmente sobre este último aspecto que nos iremos referir, aquele que na minha infância mais feriu a nossa sensibilidade.
No MEU BAIRRO, nos fins da década de quarenta, só excepcionalmente uma ou outra moradia mais modesta (e ainda conheci algumas) não possuíam luz eléctrica. Não era contudo a electricidade que fornecia o calor para a preparação dos alimentos e outras actividades do lar, como o aquecimento, o passar da roupa e outras formas de higiene e manutenção.
As refeições eram esmagadoramente preparadas no calor do fogareiro de carvão. Havia três tipos: o fogareiro feito de uma panela velha de esmalte, em que se abriam também dois ou três furos para respirar e que, com o auxílio do barro (greda), se faziam as paredes, sendo a parte superior, onde ardia o carvão, separada por pequenas barrinhas de ferro, formando grelha e os apoios, normalmente três e um pouco mais elevados, constituídos pelo auxílio de pequenas chapas dobradas.
Sempre caiados, pois além de lhe dar um aspecto limpo, possibilitava uma contextura interior mais sólida. Sempre que se acendia o lume, o combustível provocava mascarras que a cal depois tapava.
Zé U, de Alfange, dedicava-se à feitura desses “aparelhos” que vendia pelas portas do MEU BAIRRO e por outros pontos da cidade.
De sentido mais evoluído, os oleiros faziam igualmente fogareiros e também os havia de ferro fundido.
A ideia que me ficou disto, é que os primeiros que referi, além de mais baratos, eram os que davam melhor rendimento na sua utilização, pelo menos era assim que a minha mãe se pronunciava.
Estes fogareiros trabalhavam a carvão, por vezes com o auxílio de bolas (pó de carvão amassado) consideradas mais duradouras e por isso, económicas. Ateadas com carqueja ou com qualquer outra acendalha que de momento se arranjava.
Era este o meio vulgar de produção de calor para a confecção dos alimentos.
Nalgumas casas e quando o dia ou número de pessoas o justificava, havia e utilizava-se o fogão de lenha.
Em minha casa existia um de ferro, feito pelo meu avô paterno, para mim muito bonito e que recordo com muita saudade.
Foi a minha mãe que deu as medidas, pouco antes ou depois de casar. Pelas contas que faço, por alto, durou mais de trinta anos ao nosso serviço e ainda continuou noutras mãos, sabe-se lá por quanto tempo.
Possuía duas bocas circulares, caldeira de cobre, ao lado da fornalha, seguindo-se o forno com duas divisões. Na parte superior tinha um varão de metal que andava sempre muito limpo, tal como a caldeira que possuía naturalmente uma torneira. A porta da fornalha e a do forno, possuíam à sua volta um aro de ferro, achatado, que era muito bem lixado, reluzindo como um espelho.
Quem trabalhava com ele conhecia-o bem e assim podia controlar o seu calor, principalmente quanto ao forno.
Em minha casa e penso era o normal, acendia-se sempre em dias de “nomeada” (como dizia a minha mãe) Natal, Páscoa, e aniversários natalícios ou quando havia mais gente em casa. Quando estava muito tempo sem se acender, a minha mãe tomava isso em consideração, dizendo que o tinha de fazer para assim manter a sua conservação, evitando a ferrugem. Quando isso acontecia, ficávamos sempre satisfeitos. Porquê? Além da culinária ser diferente, havia sempre o aproveitamento do forno para fazer uns bolinhos que desejávamos.
Também conheci nesta altura, ainda que de uso relativamente restrito, os fogões que trabalhavam a aparas de madeira.
De “carrinho de mão”, lá ia o pai ou algum filho mais grandote à estância do “Louro” comprar uma ou duas sacas de aparas, que traziam bem cheias, até não poderem levar mais.
O fogão era de ferro e cilíndrico. No sentido do eixo colocava-se o rolo, um bocado de madeira de forma igualmente cilíndrica. As aparas iam-se espalhando à sua volta e bem batidas com um pau. Operação trabalhosa, se o fogão não ficasse bem atacado, não trabalhava, isto é, as aparas não ardiam pois o lume abafava.
O pau redondo depois de retirado originava uma espécie de canal por onde circulava o ar que alimentava a combustão. Ateado por baixo, quando trabalhava bem, punha-se em brasa.
Gostava imenso de ajudar os meus amigos a atacar o fogão de aparas.
Anos depois, a evolução trouxe-nos outro tipo de fogareiro – o a petróleo. Desapareceram quase os de carvão mas manteve-se o fogão de lenha.
Havia vários formatos de fogareiros sendo o depósito da maioria, de metal. Três suportes sobre os quais assentava uma base circular, possibilitavam o colocar da vasilha.
Existiam dois tipos de “cabeça”, os silenciosos e as ruidosas. Se as primeiras não provocavam barulho, as segundas eram mais rápidas e avariavam menos.
O álcool desnaturado enchia um pequeno reservatório que circulava a cabeça. A sua combustão aquecia-a. O petróleo, pressionado pela introdução de ar por intermédio de uma bomba, era lançado em combustão cuja chama o espalhador distribuía. O bico por onde o petróleo saía, desobstruía-se por intermédio do espevitador
Quando funcionavam bem, era uma alegria a sua utilização, mas quando avariavam provocavam irritações enormes e ... o almoço não estava pronto a horas. Lá ia eu, de fogareiro metido numa alcofa, a caminho da oficina do meu tio para se proceder à reparação. Dava-me logo outro para trazer para casa e mandava-me voltar com ele à tarde ou no dia seguinte, conforme o trabalho que tinha e a reparação a efectuar
Os fogareiros a petróleo (de que possuo um como relíquia e que já tenho posto a trabalhar para a gente nova conhecer) e os fogões de lenha vieram a ser vencidos de uma maneira quase efectiva, no MEU BAIRRO, nos fins da década de cinquenta, pelo gás de botija.

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O aquecimento das casas era feito principalmente pela combustão do cisco (aparas de carvão) colocado em alguidares velhos ou “braseiras” feitas de folha zincada, cobre ou metal, conforme as posses. Colocavam-se estas últimas em caixas (estrados) de maneira que iam dos de forma quadrada aos oitavados.
Numa ou noutra casa já havia aquecedor eléctrico (um luxo) mas que só dava para uma pessoa e não para a família, como se pretendia e nesse tempo havia família e quase sempre numerosa, o que hoje raramente acontece. Naturalmente que este meio de aquecimento veio a desenvolver-se, juntamente com o do gás e hoje carvão, não é fácil de encontrar, quanto mais cisco! Além de sujar as casas, havia que ter cuidado com o anidrido carbónico que quando não havia cuidado, causava a sua vítima.
O passar da roupa era feito com um pesado ferro de passar que foi buscar o nome à substância de que é feito. Estes interessantes objectos, tinham pega de madeira. Além dos orifícios para estimular a combustão, atraía-nos o fecho, que em muito exemplares, tinha o feitio de um galo.
Lembro-me muito bem do primeiro ferro eléctrico que entrou na minha casa. Muito rudimentar, custou cem escudos e foi adquirido no Sr. José de Oliveira que além de barbeiro, vendia telefonias e ferros eléctricos, pelo menos. Situava-se ao lado do desaparecido Café Portugal que me traz muitas recordações.
Penso que escrevi tudo o que tinha imaginado.
Agora caro leitor, ajuíze se mereceu a pena gastar cinco minutos com esta leitura.
Afinal, tudo é muito diferente, naturalmente, do que se passa hoje. Mas é bom não esquecer o passado.