terça-feira, 17 de novembro de 2009

Tipos humanos

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 4 DE JUNHO DE1993)




As figuras populares são uma constante desde sempre de pequenas “terras”, bairros, zonas mais alargadas e até mesmo de “terras” maiores, onde a sua projecção acaba por se “impor”

A figura típica abrange todos os extractos sociais mas tem mais incidência nas de menor ou nulo poder económico.

É se figura popular sem o procurar-se ser – a sociedade em que está inserido e involuntariamente é que acaba por o determinar.

As razões dessa “eleição” determinam-se por características que evidenciam, de que não abdicam, utilizando-as em excesso, muitas delas ou quase todas com algum sabor picaresco.

São assim pessoas conhecidas de todos, ainda que muitas vezes não se lhe conheça o nome, mas quase sempre a alcunha, algumas provenientes do seu próprio tipismo.
A MEMÓRIA de hoje é dedicada a três figuras humanas do MEU BAIRRO e da minha adolescência.

Não sei o nome de nenhum e penso que quem os conheceu como eu, também não o saberá, mas creio que as minhas palavras facilmente as trarão à memória.

Homem meão, para o baixo, curvado, de meia-idade mas de cara já enrugada, jaqueta, calça justa de cotim já coçada. Solteiro.

Aos sábados, após o sol-posto e depois de receber a jorna, aparecia no MEU BAIRRO, muitas vezes de enxada de bicos às costas e que constituía o seu ganha-pão e da mãe, com quem vivia.

Nunca soubemos onde morava mas penso que seria numas casitas na periferia do bairro, para o lado da Fonte das Padeiras.

Com uns magros escudos, vinha para o seu passatempo favorito, beber uns copos nas tabernas do bairro.

Ainda “são”, ia dizendo numa linguagem atrapalhada e pouco perceptível:- (...) com um bocadi de bacalhá, pã e um li de vim, mim tabalha di intê.

Não seria preciso muito para se embebedar e quando as tabernas fechavam, meio cambaleando, caía aqui e ali, acabando por se sentar ou deitar, onde calhava, de Verão ou de Inverno.

Bom homem, nunca ofendeu ninguém, mas... o seu apito, que não dispensava, não deixava de apitar e nas casas que tinham o azar de ficar próximo do local onde “assentava arraiais”, não se conseguia descansar até alta noite!
Quem não se lembra deste pobre homem trabalhador que todos conheciam por Bacalhá!
Como o tempo passa!
A sua figura continua no meu sótão das recordações!

***

As outras duas figuras constituíam um casal. Ele, magro e alto, sempre de boné enfiado na cabeça para lhe acomodar o cabelo, barba invariavelmente crescida, aspecto macilento, movendo-se com lentidão. Pouco menos que andrajoso, carrega numa saca os utensílios do trabalho.

Ela, baixa e franzina, andrajava-se de preto e transportava numa antiga alcofa, o misérrimo pecúlio. Aparentemente mais velha do que ele, corriam as ruas do MEU BAIRRO com o seu pregão característico. Dizia ela, numa voz esganiçada: - É o gateiro e o chapeleiro; respondia ele num tom mais grave e pausado – co – la – tudo.
A miudagem apanhou o sotaque (que ainda hoje tenho) e vai disto, um pouco à frente ou um pouco atrás (para obter segurança, não fosse o diabo tecê-las ia repetindo o pregão, sem qualquer reacção da parte dele mas ela, de vez em quando fazia ameaças e principalmente saía-se com grande palavreado.

Pernoitavam onde calhava e o alpendre da escola protegeu-os muitas vezes da chuva e do frio.

Lembro-me de os ver no seu trabalho, ela sentada no chão com os seus óculos ovais na ponta do nariz, gateando alguidares e tachos, ele substituindo varetas partidas em chapéus-de-chuva.

Quando adquiriam alguns tostões, entravam na taberna e ela pedia um copo dos grandes para ela e um pequeno para o “marido”, justificando sempre que “eu é que trabalho!”
Dizia-se que esta pobre mulher, em tempos, casada, tinha vivido muito bem.
Algumas vezes a minha mãe lhes matou a fome, chegando a impressionar a maneira sôfrega com que comiam.

Pobre gente, de que nunca soube o nome!

Aqui fica está MEMÓRIA que como é óbvio, não teve o intuito de menosprezar as pessoas, mas sim recordar gentes que me marcaram e não esqueço.

Por detrás daquelas vidas de que conheci uma mínima parte, que tramas se teriam desenrolado?