sexta-feira, 24 de julho de 2009

A Toponímia

(PUBICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 31 DE MAIO E 7 DE JUNHO DE 1991)

“Os estudos toponímicos, que fazem seu objecto as designações atribuídas pelos homens aos espaços onde vivem e circulam, tem constituído em Portugal um domínio preferencialmente frequentado por filólogos, etnógrafos, coreógrafos e amadores ou curiosos da pequena história local”.

É assim que se refere ao assunto o autor (1) de um recente trabalho que chegou às nossas mãos.

Somos um curioso da pequena história local que procuramos compilar o que vamos conseguindo ler aqui e ali. Sempre que possível, vamos às “fontes” e ouvimos as populações que têm sempre algo para dizer, que os livros não dizem.

O povo de uma maneira geral dedica interesse ao nome da sua terra e muitas vezes explica-o por intermédio de lendas mais ou menos bem arquitectadas.

Alguns topónimos da freguesia são bem curiosos como acontece com os Casais da Curiosa, do Paro, Porto Mau, Malcozinhado, Espodião e Seca-o-Alho, entre outros.

É frequente a toponímia dupla, o que não é muito vulgar noutras freguesias. Assim, Quinta do Mata-o-Demo ou das Rebelas, Casais de Vale Donzelas ou do Vale Dourado, Casais do Rio ou de Perofilho, Casais da Cabrita ou Cabritada, são alguns exemplos.

Iremos agora indicar o que nos foi possível reunir sobre o assunto.

***
VÁRZEA – Comecemos pelo nome da freguesia que é de fácil explicação. Na Revista Portuguesa de Filologia (1947) (2) ao referirem-se a várzea indicam:- “campina cultivada, chã, planície, palavra de cunho inconfundível pré-romano, cuja base bárcena, várcena, oferece o mesmo sufixo átono – ena.

Que a origem do topónimo está na configuração do solo e suas características (geotopónimo), parece não deixar dúvidas, mas nunca o terá sido em função da quantidade.

No sul do País aparece com mais frequência a variante vargem e por vezes varja.

No Dicionário Corográfico de Portugal (3) que consultámos, apareceram cento e três referências a este topónimo, alguns compostos e dezasseis no plural. Das sete “Vargem”, só uma a norte do Tejo.

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VILGATEIRA – Topónimo que é talvez da pré-nacionalidade local, com villa no sentido territorial agrário (rústico) antigo e nunca municipal. O outro elemento designa a fauna bravia que ali proliferava nesses tempos. (4)

Ainda hoje é notório o aparecimento de ginetes ou gatos-bravos na zona, o que acontece também em relação aos texugos.

Os nomes comuns usados nas denominações das povoações foram derivados de plantas, animais (que é o caso), minerais e de diversos, outros empregados sem modificações

O maior número pertence visivelmente à Idade Média. (5)

Pinho Leal (6) ainda que refira a explicação dada, para a qual se inclina, conta uma lenda que diz assim:

“Houve aqui um devoto de deus Baco (diz a tradição), que costumava embriagar-se com água-pé pelo que o denominavam vil-bebedeira e dele tomou esta povoação o nome de Villa Gateira”.

Foi lenda que nunca ouvimos contar por mais que a procurássemos . Em contrapartida ouvimos outra que nos parece mais bem arquitectada. Quem a nos transmitiu, ouviu-a nos primórdios do século.

Reza assim:

A infidelidade de uma mulher levou-a a ocultar o amante em casa. O marido apareceu inesperadamente e fechou a porta. O intruso, tentando fugir, o perseguido pelo atraiçoado ao aproximar-se da porta e vendo-a fechada sem possibilidades de se escapar, exclamou:- Ah! vil (no sentido de infame) gateira!

A partir daí o lugar começou a ser conhecido por Vilgateira.

Era esta a lenda que a velha Airosa, que vivia para os lados do Rio Feitor, contava há muitos anos quando os velhos ainda eram olhados pelos novos como pessoas que lhe podiam ensinar alguma coisa, nem que fossem “histórias” como esta.

A grafia do topónimo passou por várias fases até se ter fixado na actual.

Sem sabermos porquê, a Comissão Administrativa da Câmara Municipal determina (!?) que seja alterado tanto o nome da freguesia como o da aldeia.

Reunida a Junta de Freguesia sob a presidência de Joaquim Lopes da Fonseca, deliberou que a freguesia ficasse a denominar-se de Santo António da Várzea e o lugar de Vilgateira, Vila de Santo António (1936) (7).

Não tenho conhecimento que a alteração tivesse sido ratificada e publicada no jornal oficial – Diário do Governo. Continuamos sim a ter em toda a documentação oficial as designações de freguesia de Várzea e aldeia de Vilgateira.

Encontrámos referenciado outro topónimo igual, lugar da freguesia de S. Simão de Litém, concelho de Pombal.

***
PEROFILHO – Parece ter origem no antropónimo Pedro (Filho), nome de um possessor dos primeiros séculos da Monarquia. (8)

Na Idade Média aparece ainda designada por Pedro Filho.

Encontrámos na nossa toponímia referência a trinta e seis topónimos que tiveram por base este antropónimo, associado a outro ou a qualquer circunstância, para melhor identificação.

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ARAMANHA – Por vezes aparece designada por Aramenha.

Topónimo de não fácil explicação. Na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira consideram-no pré-nacional, talvez aproximável de Sarmenha que lembra a notável estância de romanização que é a freguesia deste nome, pois que, o topónimo não deve ser importação dali, por efeito de colonização interna.

No Dicionário Corográfico que temos vindo a referir, só encontrámos esta Aramanha. Sabe-se contudo, existirem pelo menos três Aramanha (9), (concelhos de Caldas da Rainha, Cartaxo e Marvão), sendo a deste último, S. Salvador da Aramenha, povoação muito antiga e que alguns pretenderam identificar com Medóbriga mas que parece ter sido Ammaia.

O nome destas Aramenhas poderá provir, por colonização da Aramenha (S. Salvador), talvez única na altura?

Aramenha também significa erva-babosa ou aloés, plantas liliáceas de folhas carnudas mas que desconhecemos a sua existência na zona.

É por isso muito obscuro que este topónimo e ainda mais se for escrito com um “a”.

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CORTELO – Também designado frequentemente por Corotelo, é vulgar na nossa toponímia.

De origem etimológica controversa, os entendidos divergem no seu étimo.

Recorrendo ao Elucidário de Fr. Joaquim de Santa Rosa Viterbo (10), indicaremos várias hipóteses ali encontradas.

De Corte, “pátio rústico e descoberto, cercado e guarnecido de currais, mangedouras ou coberto, em que os animais e criações do campo se recolhem, guardam, multiplicam e cevam”.

Na baixa latinidade, cortes e curtis se tomaram por um casal, vila, quinta, abegoaria, prédio rústico, horta, quintal (...) Também significou o arrabalde de uma povoação, o pavilhão, tenda ou barraca do príncipe ou general do exército.

De Curte – casal, quinta, abegoaria. Prédio rústico com todo o necessário para a lavoura – o alpendre, pórtico, galilé, pátio coberto e defendido das chuvas (...).

De Coitelho, conchoso, cerrado, um pequeno recinto fechado sobre si que serve de horta, jardim, pomar ou logradouro das casas.

De Curtello, parece ser cutelo ou poda de vinhas, que se faz com ele.

Qual será a origem deste Cortelo?

CHARRUADA – No Dicionário Corográfico encontrámos mais dois topónimos iguais, um na freguesia de Assentiz (Torres Novas) e outro na de Mafra.


Denuncia claramente a actividade agrícola. Charruada é um terreno lavrado a charrua.

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ALCOBACINHA – Topónimo geográfico que também denuncia com clareza a importação por fundadores ou repovoadores da localidade.

Em 1527 ainda era designada por Aldeia de Alcobaça (11), para a distinguir da vila que lhe deu o nome.

Por estes sítios possuiu o conhecido benemérito, Padre Francisco Nunes da Silva, vulgo Padre Chiquito, alguns bens.

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CARNEIRIA – Outra dificuldade para explicar este topónimo que nos parece ser um biotopónimo.



Não encontrámos no Dicionário Corográfico outro igual, ainda que apareçam Carneira, Carneiro e Carneiros.

É um povoado muito disperso e que no século XVI já existia nesta zona um casal com essa designação.

Estará o topónimo relacionado com carneiro, mamífero ruminante? Ou terá por base a planta da família das cucurbitácias, variedade de abóbora, de fruto comestível, cultivado em Portugal?

Também chamam carneira a uma variedade de macieira de frutos doces.

Ainda hoje tudo isto é possível ali encontrar com facilidade.

Afinal, onde estará a origem do topónimo Carneiria?

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OUTEIRO – À configuração do terreno onde se desenvolveu, foi buscar o nome a que vulgarmente de acrescenta “da Várzea”, para o distinguir de outros das redondezas.

Da Várzea por lá se ter instalado em meados do século passado a Igreja Matriz “transferida” de uma várzea para um outeiro.

Geotopónimo vulgaríssimo, ultrapassam as seis centenas os que vimos referidos.

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QUINTÃO – Estes casais, também dispersos, possuem hoje algumas vivendas, com tendência para aumentar, que funcionam como casas de campo que os proprietários utilizam nos fins de semana para fugirem dos grandes centros, onde passam os restantes dias nas suas ocupações profissionais.

O topónimo deve corresponder a “quintana”, “quinta”, que era uma subunidade agrícola, composta de habitações de cultivadores ou proprietários, pomares, terras lavradias (...)

De quintana derivou a denominação toponímica Quinta, Quintães (13).

Quintão aparece mais de trinta vezes na nossa toponímia, quase totalmente a Norte do Douro. O plural também ultrapassa as três dezenas mas tendo alguma representação a Sul daquela região. Quinta aparece noventa e cinco vezes e Quintães vinte e nove.

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O MAIO – Estes casais que se situam na parte mais elevada da freguesia, terão o seu nome derivado das plantas monocotiledónias da família das iridáceas, “Maios” ou “maias”e frequentes no local, florescendo no mês de Maio.

Só encontrámos Maios no concelho de Caldas da Rainha.

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CHÕES – Casais que se dividem entre esta freguesia e a de Moçarria.
Chões/chãos – termo que significa terra plana ou pequena propriedade (14) Ainda hoje se diz na zona, tem um bocadinho de chão.


Chão e Chões, aparecem mais de uma centena de vezes na nossa toponímia, ora sós, ora associados.

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MATA-O-DEMO – Uma quinta e casais. São dos mais afastados da sede de freguesia.

Na Idade Média trazia estas terras um Álvaro Afonso Mata-o-Demo (15), antropónimo que teria gerado o actual topónimo.

Também lhe chamam Rebelas, de riba, topográfico. (16)

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COIMBRÃ – Tal como Alcobacinha, deve o seu nome ao deslocamento de população de terras antigas para outras, arroteadas e ocupadas posteriormente.

Existe outra Coimbrã na freguesia de Atouguia da Baleia, concelho de Peniche.

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FONTE (DE VILGATEIRA) e AZENHA (CASAIS DA) – Estes dois pequenos povoados, perto um do outro, devem o seu nome à proximidade de água, condição de principal importância para as suas origens, funcionando os arqueotopónimos como lembrança da vantagem na sua instalação. Fonte veio mesmo a originar o nome de uma família local, os Fontes.

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CASAL – Topónimo comum a várias povoações da freguesia. Casal era uma fracção de vila, no sentido rústico, agrário, que se veio a tornar independente. Os primitivos proprietários concederam terrenos a servos ou a clientes pobres, para agricultar, após desbravamento, mediante certas prestações, como por exemplo, foros que foram muito abundantes na freguesia.

A palavra ficou restrita aos prédios rústicos não nobres e entra na toponímia normalmente associada a outra, para melhor identificação. (17)

Notas

(1)–“Toponímia e ideologia (s)”, Armando Jorge Silva, Lisboa, 1926-1961, in O Estado Novo–das Origens ao Fim da Autarcia -1926-1959, II Volume.
(2)–Dr. Joseph Marie Piel, Tomo I do Volume I.
(3)–A. C. Amaral Frazão, Porto, 1981.
(4)–Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
(5)–As Vilas do Norte de Portugal, Alberto Sampaio, 1979.
(6)–Portugal Antigo e Moderno, 1873-1890.
(7)–Acta da Sessão de 20 de Dezembro de 1936.
(8)–Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
(9)–Lendas, Histórias, Etimologias Populares, (...), Alexandre de Carvalho Costa, 1959.
(10)Edição Crítica por Mário Fiúza, Porto, 1966.
(11)Santarém Quinhentista, Maria Ângela da Rocha Beirante, Lisboa, 1981.
(12)“O Padre Chiquito e os que precisam” in Correio do Ribatejo de 15 de Janeiro de 1982.
(13)As Vilas do Norte de Portugal, Alberto Sampaio, 1979, pág. 73.
(14)“Subsídios para o Estudo da Toponímia Albicastrense no século XVI”, Manuel da Silva Castelo Branco, in ADUFE, Revista de Etnografia, Jan/85, nº 2.
(15)Santarém Medieval, Maria Ângela da Rocha Beirante, 1980.
(16)Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira.
(17)As Vilas do Norte de Portugal, Alberto Sampaio, 1979.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

O comércio e actividades similares

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 12 DE FEVEREIRO DE 1993)
A concentração de pessoas proporciona naturalmente a existência da actividade comercial e de outras similares.

O MEU BAIRRO foi crescendo, as construções multiplicaram-se, o comércio apareceu.
Dentro do que nos propusemos escrever, iremos hoje recordar o que era esta actividade há cinquenta anos.

Os estabelecimentos comerciais, muito poucos, do tipo de aldeia e tinham maior incidência na minha rua, visto ser a principal do bairro.

No cruzamento da minha rua com a de Lopo de Sousa Coutinho, existiu um estabelecimento comercial misto, mercearia, fazendas (penso que pouco mais do que riscados) e taberna, conhecido pelo “Chinês”.

Ficava distante da minha casa e daí um menor conhecimento da minha parte. A taberna que ficava na cave, tinha um corredor largo, empedrado, com saída para a Rua Almeida Garrett.


[Bandeja para servir copos de vinho. Des. JV]
Aí se situavam os estrados onde os homens jogavam o chinquilho disputando os copos servidos numa “bandeja” muito especial, feita de folha, em forma elíptica e de grande pega. O intuito principal desta “bandeja”, que tinha um fundo falso, era aproveitar o vinho que se entornava ao encher os copos, já que os fregueses os queriam bem cheios. Quando assim não acontecia, diziam logo para o taberneiro que não usavam “galões”.

Também aqui se vendeu carvão e carqueja.

Continuando a descer a minha rua, encontrávamos do lado direito, um pouco ao meio do bairro, outro comércio, de um lado a mercearia, do outro a taberna. Lembramo-nos do edifício ter sido construído e era então a loja do “Augusto Manuel”, nome que penso ainda hoje ser o do pátio que lhe fica contíguo. Ao fundo deste pátio também se serviam copos e petiscos (havia reservados) e jogava-se igualmente o chinquilho. Uma grande parreira proporcionava boa sombra.

Continuando na mesma rua e um pouco mais abaixo, do lado esquerdo e no cruzamento com a Rua Frei Gaspar do Casal, havia outro estabelecimento comercial, o “Ribeiro”.
Além de mercearia tinha depósito de pão.

Ainda me lembro bem do velhote, Sr. Ribeiro, pessoa para o forte e que era deficiente motor.

[Prédio onde se situou a mercearia do Sr. Ribeir. Foto JV]
Pouco depois o filho tomou conta da loja que alguns anos depois veio a traspassar. Era a loja onde mais íamos por ficar mais perto de casa.

Nesse tempo, os comerciantes usavam o guarda-pó, casaco comprido de tecido leve que se vestia por cima do fato para evitar que este se sujasse.

Lembro-me muito bem do velho (na altura novíssimo) telefone de manivela com ligações complicadas e difíceis e das tulhas de madeira onde se encontravam a granel feijão, grão, milho, farelos, arroz e até o açúcar, entre outros. Lá estavam também as medidas de madeira aferidas e a rasa ou rasoira.

Era aqui que comprávamos os rebuçados de Sto. Onofre que se guardavam num grande frasco de vidro com grossa tampa (a de plástico apareceu muitíssimo mais tarde) que se encontrava mesmo ao lado da balança, talvez da marca Pessoa.

O café saía de uma caixa cilíndrica, de lata, que identificava a marca, onde avultava, além do mais, um homem de bigode, com uma chávena na mão fumegando, pelo menos foi isso que ficou na nossa memória.

O merceeiro tinha no balcão de madeira, papel pardo, onde embrulhava com rapidez e eficácia, pequenas quantidades de café, colorau, pós para o feijões, etc., papel vegetal para a manteiga e banha, que vinham em latas cilíndricas, e pedaços de jornal onde embrulhava o sabão azul e branco para a roupa ou o amarelo para as casas. Havia igualmente e de vários tamanhos papeluchos de papel pardo, listados, para aviar quantidades maiores, como açúcar, arroz, massa e feijão, por exemplo.
Havia produtos em que era necessário levar a vasilha. Acontecia assim com o azeite (o vinagre era comprado na taberna) petróleo e sal, pelo menos são, de momento, dos que nos lembramos.


Para os líquidos existiam medidas aferidas mas já são do nosso tempo as bonitas medidoras cujo cilindro de vidro se enchia e despejava por acção de uma manivela.
Para o sal, levava-se uma tigela. A propósito disto, lembramo-nos que quando aprendemos a andar de bicicleta (numa de homem pois de criança era coisa que quase não havia) e estávamos na fase eufórica, mandaram-nos comprar um litro de sal para o que nos entregaram uma tigela de louça branca.

Deixar a bicicleta e ir a pé, ainda que perto, era coisa que não concebíamos, pelo que resolvemos ir de velocípede. Apesar da prática ser pouca, para lá correu tudo bem, o pior foi no regresso pois chocámos com uma vizinha partindo-se a tigela e espalhando-se o sal! Não sei como não apanhámos uma tareia!

Passou-se isto em frente do quintal do meu bom Amigo, Sr. José Gomes. Ainda era capaz de dizer o local exacto!

Entre a loja do Sr. José Oliveira (vulgo Zé Magrinho ou Zé dos Bigodes) e a do Sr. José Madeira (vulgo Zé da Loja) existia a taberna do Sr. Bento (Raul), onde se juntavam os bebedores do bairro.

Havia outra loja que se situava na Rua Almeida Garrett no cruzamento com a Frei Gaspar do Casal. Tratava-se da “Zulmira” onde comprávamos os “caramelos da bola”, os jogos de computador da época!

Umas senhas que de longe em longe apareciam enroladas juntamente com a péssima reprodução fotográfica de um jogador de futebol da 1ª divisão, ao rebuçado que não passava de um pouco de açúcar torrado (o que menos nos interessava era isso), possibilitava-nos a aquisição de cadernetas onde colávamos os nossos ídolos. Havia também outros prémios insignificantes e a almejada bola de futebol que estava colocada no cartaz para todos vermos. Àquela grande caixa cúbica que continha centenas de rebuçados, correspondia um só jogador que completaria a colecção e assim o direito a receber a bola. Aquele jogador, que tinha como os outros o seu número para identificação na caderneta, chamávamos nós o número da bola.

É claro que este rebuçado que continha o número da bola, era previamente entregue ao comerciante, evitando assim que saísse cedo e o negócio se estragasse. Quem comprasse (por arrematação) os últimos caramelos levava então o número da bola.

Acreditem que ainda possuo algumas colecções dessas, sem o número da bola, das quais não consigo desfazer-me!

Havia também uma pequena mercearia ao fundo da Rua 2º Visconde de Santarém.
Era este o comércio que havia no MEU BAIRRO nos anos quarenta/cinquenta.
Começaram entretanto a aparecer aquilo que se designava por “lugares de frutas”, tipo de comércio à base de vegetais.


O primeiro que existiu e se a memória não me falha, foi no início da Rua Lopo de Sousa Coutinho. Perto da taberna do “Bento” existiu depois outro, durante muitos anos.

A nível industrial, na Rua Almeida Garrett existiu uma oficina de reparação de automóveis e na Avenida uma pequena fábrica de calçado que chegou a ter algum nome no ramo – Calçado Plaza.

O carvão, na altura ainda o combustível mais utilizado para a confecção dos alimentos, era vendido como já dissemos no “Chinês” e no Pátio do Matafome e também no “Pitau”, ao fundo da Frei Gaspar do Casal.

Já fora do MEU BAIRRO, lembro-me de ir ao carvão e produtos derivados, às “Velhas”, duas velhotas irmãs, segundo suponho, que viviam numa travessa estreita que nos levava à Rua do Matadouro (Pedro de Santarém) e onde se encontra hoje a Praça Pedro Escuro, ou então ao Campo Fora-de-Vila, como ainda dizíamos, numa casita que pertencia ao seminário, junto à estrada para Lisboa.

Havia vários “oficiais” a viver do seu trabalho, alguns de porta aberta, como acontecia com os sapateiros, sendo o Sr. José Fernandes (vulgo Zé da Graça), o mais antigo e conhecido.

Dois irmãos oriundos do Norte, faziam escovas e vassouras de piaçaba.

O comércio ambulante também era um facto. O primeiro de que me lembro é o de mulherzinhas já entradas na idade, vindas de campos próximos com burros carregados com molhos de carqueja que apregoavam pelas ruas.

Os fogareiros a petróleo começaram a aparecer pelo que o carvão tinha menos consumo e as carvoarias entraram em crise dando lugar ao comércio ambulante.

Todas as tardes aparecia o carvoeiro com a carrocita puxado por um burro. Tocava a corneta para manifestar a sua presença, vendendo carvão, cisco (aparas miúdas de carvão que se destinavam às braseiras, os aquecedores da época) e bolas (pó de carvão amassado em forma de bolos) que se destinavam aos fogareiros.

Uma carroça puxada por macho, transportava de uma maneira muito peculiar, vasilhas de azeite, vinagre e petróleo. Devido a este último produto, era conhecido pelo “petrolino”. Vendia-se a quantidade que o freguês desejava.

No Verão, de bata azul, apareciam empregadas de uma fábrica local de refrigerantes, com grandes cestos vendendo laranjas descascadas.

De vez em quando uma mulher do campo, com cesto de verga à cabeça ou no braço, aparecia vendendo queijos frescos pelas portas.

Para concluir o comércio ambulante, resta-me referir os padeiros que de porta em porta vendiam o pão que transportavam em grandes cestos, igualmente de verga e que colocavam em bicicletas, e as leiteiras que em espelhadas bilhas de latão (?) transportadas à cabeça, com a ajuda da “sogra” ou ao quadril, vendiam o necessário líquido, a que nem todas as bolsas chegavam.

É natural que algumas coisas nos tenham passado mas pensamos ter dado uma ideia muito aproximada do comércio do MEU BAIRRO, nos velhos tempos.

Servirá para a recordação de muitos e conhecimento de gente jovem, muitos dos quais não fazem ideia de como as coisas se passavam.

***

Ainda que estas modestas “croniquetas” tenham por base o passado, pensamos que no presente assunto não seria descabido referir, naturalmente sem individualizar, o comércio hoje existente no MEU BAIRRO e assim se verificar o grande salto havido e o quase enquadramento no da cidade velha.

Podem-se fazer refeições completas ou rápidas, tal como tomar a brejeira “bica” e afins.

Além de um ou outro comércio do ramo alimentar, à antiga, já existe o moderno minimercado.

Oficinas e comércio de automóveis e venda de motos e similares.

Quem quiser pernoitar também tem onde.

A nível de saúde temos serviços de enfermagem, de medicina e de pessoal paramédico, de recuperação física e centro ortopédico.

Existe o fornecimento de oxigénio ao domicílio.

Também os animais não são esquecidos pois existe uma clínica a eles destinada.
Venda de computadores, gabinetes de desenho, gestão e contabilidade.

O indispensável infantário e já não é preciso ir à “cidade” comprar o jornal e revistas.

Como se vê por esta resumida indicação, o MEU BAIRRO já está provido de comércio variado.

Uma coisa salta à vista: - Porque não haverá um talho e uma peixaria?
São as faltas maiores que lhe notamos.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Joaquim José Alves

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 12 DE MAIO DE 1995)

Desta vez vamos referir um barquinhense.

Nasceu a 23 de Março de 1831.

Formou-se pela Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa e é nomeado farmacêutico de primeira classe do Hospital da Marinha, sendo graduado em primeiro-tenente da armada.
Já exercia funções neste hospital desde 1854.

A convite, vai reger a cadeira de Toxicologia e Farmácia, em 1857, para a Escola Médico Cirúrgica, por impedimento do professor efectivo.

Obtém na Universidade de Bruxelas, o grau de doutor em Ciências, defendendo a tese “Sur Les Acides Organiques”, o que sucedeu em 1858.

Este trabalho veio a merecer uma tradução para espanhol.

Foi eleito vereador para a C. M. de Lisboa de 1869 a 1882 e por três vezes representou na Câmara Legislativa um dos círculos da capital do País.


[Vila Nova da Barquinha de outros tempos]

Chamado com frequência aos tribunais para exames médico-legais, alguns dos seus relatórios vieram a ser publicados no jornal da Sociedade Farmacêutica Lusitana.
O relatório da análise da água do Arsenal da Marinha, de que foi incumbido, foi publicado no “Diário do Governo” de 26 de Setembro de 1866.

Sob a sua direcção foi publicado o relatório da comissão de peritos encarregada da análise química das vísceras do infante D. João, filho de D. Maria II, irmão de D. Pedro e de D. Luís e falecido em 1861 com 19 anos, possivelmente vítima de peste, como seu irmão o rei D. Pedro V.

Foi sócio das mais importantes corporações científicas portuguesas e fez parte do Conselho Nacional de Saúde Pública.
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Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira

sábado, 11 de julho de 2009

Para a história dos "Galitos da Várzea"

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 17 DE MAIO DE 1991)


O aspecto associativo foi sempre uma constante do homem que o procura para resolver muitos dos seus problemas.

É assim no campo político, religioso, socorrista, cultural, desportivo, recreativo, etc.

Iniciando-se pelos centros urbanos mais populosos, as associações foram-se estendendo, chegando hoje mesmo às pequeninas aldeias.

Em Vilgateira a primeira tentativa para o efeito (excluindo as associações religiosas), que seja do nosso conhecimento, deu-se em 1917 com a fundação (não sabemos se legalizada), da Sociedade Recreativa Vilgateirense que se dedicava fundamentalmente ao teatro e à música pelo que possuía um grupo cénico e uma tuna.

E sua existência foi efémera já que o clima político da altura não facilitou a sua consolidação.

Os anos foram passando e que nós saibamos só nos fins da década de cinquenta houve movimentação para a criação de uma nova associação. Pelos anos de 1959/60 comecei a tomar contacto com a aldeia que me viu nascer e foi-me dado assistir às primeiras trocas de ideias no sentido de se fundar uma colectividade que tanta falta fazia.

As conversas circunscreviam-se aos jovens e nessa altura, por motivos diversos, juntavam-se em Vilgateira, José Fernando do Livramento de Macedo e Brito, José Francisco Pereira Rodrigues e irmão António Augusto, Júlio da Guia e outros que dinamizaram os jovens locais, José Rui Eloi, João Monteiro Andrade, Carlos Menino, António Rafael e outros de que não me recordo.

De início, lembro-me muito bem, a preocupação era possuir uma equipa de futebol, de que Macedo e Brito era grande entusiasta, tendo alinhado numa jovem turma de “Os Belenenses”, na posição de defesa esquerdo e possuir uma sede a fim de se realizarem os bailarecos de aldeia que proporcionavam alguma receita e... derriços.

Por esta altura já se falava entre a rapaziada nos “Galitos”, pelo que o nome já estava escolhido e nas cores azul e branco, aparecendo assim a influência nítida de Macedo e Brito, com as cores do clube de Belém, da sua simpatia.

O nome “Galitos” parece ter tido o sentido dos seus elementos serem jovens mas combativos.

À saída da aldeia para iniciar a minha vida profissional, corresponde a fundação efectiva do Grupo Desportivo e Cultural “Os Galitos” da Várzea que se dá em 1960, já com a adesão de alguns homens chefes de família.

Carta de um amigo, datada de 2 de Setembro desse ano, informa-me que”... Os Galitos estão em grande revolução. Já compraram um avultado número de cadeiras e algumas mesas e já abrem todos os dias. O Senhor D. José, do Mocho, ofereceu quinhentos escudos para as cadeiras e prometeu vir brevemente fazer uma palestra”.

Como se justificava, a alma da fundação, o algarvio Macedo e Brito, foi o seu primeiro presidente.

Perdemos o contacto com a “sociedade”, designação mais utilizada pelos vilgateirenses mais idosos. Sabemos contudo que pouco depois foi comprada a sede e que a TV acabada de chegar tem todos os dias muita gente a assistir aos programas, pelo que o número de associados sobe vertiginosamente.

O afastamento de José Fernando leva à presidência o varzeense João Joaquim Fragoso, cuja acção foi decisiva e extremamente proveitosa, sendo a alma da legalização da colectividade.

Sucedeu-lhe Virgílio Veiga, um homem dinâmico extremamente equilibrado a quem coube a missão de organizar, pôr a casa em ordem, missão que cumpriu talvez como ninguém.

O 2º aniversário é comemorado no seu tempo com grande festa realizada em 22 de Dezembro de 1962, É representada a peça “Uma Noite de Natal”, ensaiada pelo Padre João Farinha e interpretada por José Fernando e José Francisco. Nas variedades foram interpretadas por amadores locais, entre outras”Vila Nova de Milfontes”, “Nós somos alentejanos”, “Rosinha do Meio”, “Oliveira da Serra”, “Sebastião come tudo”, “Alecrim aos molhos” e “Vira de Santarém”.

Procurámos assim dar em linhas gerais o movimento que originou a fundação e consolidação desta colectividade.

***
Com trinta anos de vida, já passou a adolescência. Tem atravessado períodos difíceis e outros de fulgor.

O futebol, uma das razões para a sua fundação, nunca se chegou a impor. Os bailarecos, a outra, pensamos que continuam, apesar de cada vez ser maior o número de discotecas.

Um grupo cénico, que parece gozar de certa autonomia, tem sido talvez o maior baluarte da associação, colaborando nas Jornadas Culturais do concelho, com exibições por todo ele.

Outra manifestação cultural de muito interesse foi a fundação de um agrupamento folclórico que gozava também de autonomia.

Venceram as grandes dificuldades iniciais, o que não era fácil, o aperfeiçoamento foi sempre notório e as suas exibições não envergonhavam o grande nome do folclore do bairro de Santarém.

Deslocações pelas redondezas e a terras distantes, levaram longe o nome da freguesia.

Lamentamos profundamente o seu desaparecimento, depois do mais difícil se ter conseguido.

Oxalá que num futuro que se dessa próximo, procurando pontos de convergência num diálogo aberto. Ele possa ressurgir, para ficar.

O nosso afastamento da freguesia não nos possibilita, como era nosso desejo, “historiar” as três décadas de existência. Deixámos contudo o início, talvez o menos conhecido dos vilgateirenses, principalmente os jovens, responsáveis pelo seu futuro.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Figuras Varzeenses - O Dr. Silva Pereira, pedagogo e poeta


(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 10 DE MAIO DE 1991)
Todas as terras por mais insignificantes que sejam, possuem sempre, no decorrer dos tempos, filhos que se destacam, quando não a nível nacional, a regional ou local.

É verdade que nos grandes centros urbanos a quantidade está na razão da sua população, mas também é verdade que de pequenas aldeias têm saído grandes figuras nacionais.

A freguesia da Várzea não constitui excepção, tendo também as suas figuras, umas pelo nascimento, outras por adopção.

Falaremos hoje do Dr. Silva Pereira, de seu nome completo, António Augusto Coelho da Silva Pereira que nasceu no pequeno lugar da Fonte de Vilgateira a 6 de Julho de 1881,sendo filho de Francisco Augusto e de D. Maria Augusto e irmão do Cónego, Joaquim Augusto, professor do Liceu de Santarém e director do Colégio da mesma cidade, figura bem conhecida na época.

Iniciou, tal como o irmão, os seus estudos no Seminário de Santarém.

Além da licenciatura em Letras, pensamos que completou, segundo na altura nos informaram, o curso da então Escola Médica do Funchal de que nunca fez uso.

Leccionou durante muitos anos, entre outras, a disciplina de Português no Liceu “Jaime Moniz”, daquela cidade e onde também veio a exercer as funções de reitor. Aí casa com uma senhora madeirense.

Foi poeta de merecimento vencendo alguns jogos florais a que concorreu, como aconteceu com uns organizados pela ex-Emissora Nacional.

Parece que o Dr. Silva Pereira colaborou com a imprensa madeirense onde terá publicado alguns dos seus versos.

Do seu valor literário fala-nos o Jornal do Funchal de 9 de Julho de 1939, donde registámos os seguintes comentários na coluna “Letras Portuguesas”.

“Livros de versos, há alguns anos que não aparecem em Portugal com tanto valor. É um poeta de raro engenho, esmerada cultura literária, fina sensibilidade e vincado temperamento artístico.

Servindo-se das maravilhosas qualidades melódicas e plásticas da nossa linguagem corrente, sem o disfarce enganoso de termos retumbantes ou raros, dá à poesia nacional interpretação e vida nova , à margem das correntes e escolas modernistas. Espontâneo, natural e simples sem ser trivial nem redundante, sem pretensões nem nefalibatismos, modela a sua arte poética com uma linguagem vernácula, colorida, animada e graciosa.

Os seus versos, de pensamentos nobres e conceitos profundos têm um inusitado ritmo dentro da sua beleza estrutural, que prende o leitor à sedução da sua harmonia.

Os versos do Dr. António Augusto definem bem a sua predilecção pela história e lenda”.

Da sua bibliografia conhecemos: - Poesia Vária, 1939, As Rosas da Rainha, O Liz, 1939 ambos editados naquela ilha do Atlântico e Luz e Flores (Algumas saudades e martírios) Líricas, 1946, editado em Lisboa, seu último livro dedicado postumamente a seus pais e que tenho o prazer de possuir um exemplar, que guardo como relíquia.

***


Após a aposentação, regressou ao torrão natal que muito amava, refugiando-se na habitação onde nasceu, que mandou restaurar e na propriedade rústica contígua, cheia de vegetação e onde corre um ribeiro.

Numa papelada que nos chegou às mãos, encontrámos, entre outros, um poema do Dr. Silva Pereira, escrito pelo seu próprio punho, que pensamos ainda inédito.

O ROSTO DA SAUDADE

Quanta vez, me surpreendo eu, só.
A resolver, buscando exíguos nadas,
O pobre meu passado, em cinza, todo é pó!

E após mim, vejo um trilho abandonado,
Que a seca folha cobre, e as ervitas mirradas...
Trilho triste, sem curva graciosa
Sem uma sombra, uma árvore, uma rosa,
Um miradouro de atraente vista,
Mas tudo, lá, no fundo, a avultar imprevista,
A casa pequena em que eu nasci:
-Branca, como no dia em que eu parti;
Cerejeiras em flor, azul e sol,
Um ribeiro, uma fonte, um rouxinol,
O sítio lindo, a Paz sorrindo, a flor abrindo...

E a olhar, a olhar, como quem espera alguém,
-Sempre a Saudade, com feições de minha mãe.


No poema, o poeta mergulha no passado e vai encontrar como principais referências, a casa em que nasceu e em quatro versos mostra-nos como era e onde se situava, “o sítio lindo, a Paz sorrindo, a flor abrindo...” “O rosto da saudade”.

Mais de meio século tem este poema que segundo pensamos, só agora saiu da gaveta – a memória do autor que nos perdoe o atrevimento.

Tudo o que descreve se mantém, excepto as cerejeiras que já não conhecemos e foram referidas pelo Dr. Francisco Câncio, num dos seus livros pois que, quando rapaz, lhe apanhava o fruto nas ocasiões em que acompanhava o Cónego Joaquim Augusto nas visitas que fazia a sua mãe.

O Dr. Silva Pereira deambulava pela propriedade, vestindo como homem do campo, não esquecendo a bota cardada. Brincava à agricultura e extasiava-se com a vegetação.

Raramente saía dos seus domínios, era contudo certa a ida mensal a Santarém, em transporte colectivo, receber a pensão de reforma. Então vestia à senhor dos princípios do século com o seu chapéu de coco, relógio de bolso e bengala de castão de prata.


Conhecemos bem o Dr. Da Fonte como localmente o conheciam e que visitávamos acompanhando o nosso pai, quando éramos rapaz já de barba.

Rondava ele então os oitenta anos e mostrava-se rijo. Muito obsequiador, como é o homem do bairro, nunca podíamos sair sem nos sentarmos à mesa. Lembramo-nos das azeitonas do casal, com um tempero muito característico, do chouriço assado, das maçãs reinetas assadas no forno e dos bolos de mel, receita trazida da Pérola do Atlântico.

Tratou-nos sempre por menino.

Apesar dos anos passados, ainda temos na mente a figura do Dr. Da Fonte, no ouvido o timbre da sua voz pausada e muito firme e na lembrança alguns factos passados.

Faleceu a 26 de Junho de 1967, com 86 anos, ficando sepultado no cemitério da freguesia onde nasceu, como foi sempre seu desejo.

domingo, 5 de julho de 2009

João Afonso de Aguiar

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 2 DE JUNHO DE 1995)


[Túmulo de João Afonso de Aguiar ou de Santarém na Igreja de S. Nicolau da cidade de Santarém]

Mais conhecido por João Afonso de Santarém, é dado como nascido em Santarém no século XIV e tomou parte na batalha de Aljubarrota, batendo-se ao lado do Mestre de Avis.

Tendo posto ao dispor os seus bens para financiar o movimento popular a favor do Mestre de Avis, veio a ser recompensado por ele, já como rei, com mercês e bens, alguns confiscados aos que seguiram o partido castelhano. Assim, é cumulado de privilégios pelo menos em 1393 e 1421, por cartas de doação.

Conselheiro e valido de D. João I e uma vez que havia grande falta de mesteirais em Santarém pelas opressões que lhe eram feitas, obtém do rei a concessão de liberdades aos que quisessem vir viver para Santarém, dando-lhe o concelho casas e tenças.

Vedor da Fazenda de D. João I e alcaide-mor da vila de Santarém em 1403.

Vivendo no seu palácio na rua direita da Porta de Manços, ao “Canto da Cruz”, rua que hoje ostenta o seu nome, fundou aí o hospital de Jesus Cristo, por testamento de 6 de Dezembro de 1426, “por minha alma, de meu pai e mãe, e pela de minha mulher Iria Afonso e por todos aqueles por quem sou obrigado a rogar a Deus”, conforme o documento.

Acrescenta o mesmo testamento que haverá treze camas, oito para homens e cinco para mulheres.

Este hospital que se tornou o mais importante da vila, acabou por aglutinar os restantes, em número de catorze, depois de 1486, dada a bula do papa Inocêncio VIII, que tal permitia.

Mais tarde, com a fundação das Misericórdias, foi incluído na de Santarém, instituída em 1502.

O último hospital a ser anexado foi o de S. Lázaro, mais propriamente uma gafaria, o que sucedeu só em 17 de Dezembro de 1611, já que a Câmara teve a sua tutela até àquela data.

Este escalabitano ilustre está sepultado na igreja de S. Nicolau, num magnífico túmulo de mármore, com tampa prismática, primorosamente lavrada, como refere o Dr. Virgílio Arruda, saudoso Director deste semanário.

Sarcófago do século XVI, é classificado de “imóvel de interesse público”.

__________________________

Santarém Medieval, Maria Ângela V. da Rocha Beirante, 1980
Santarém na História de Portugal, Joaquim Veríssimo Serrão, 1950
Santarém no Tempo, Virgílio Arruda, 1971
“Varões Ilustres e Figuras de Relevo Scalabitano", Amadeu César da Silva, in Vida Ribatejana, nº especial de 1957
“Sobre uma tela da Igreja de S. Nicolau em Santarém – O retábulo da Capela de João Afonso – 1623”, por Vítor Serrão em Correio do Ribatejo de 6 de Julho de 1974
Boletim da Junta de Província do Ribatejo, 1937/40
Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. 27

quarta-feira, 1 de julho de 2009

A apanha da azeitona

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO Nºs DE 26 DE ABRIL E 3 DE MAIO DE 1991)
O último “escrito” que assinámos neste já centenário jornal, paladino não só de Santarém mas de todo o Ribatejo, foi dedicado “à molhadura”, o acto que vinculava o trabalhador ao patrão.

Talvez não seja descabido referir hoje como se desenvolvia há décadas, uma das principais actividades deste povo e que abrangia não só esta freguesia mas também as limítrofes, praticamente as que constituem o Bairro Ribatejano, onde a oliveira é (era) rainha.

A evolução da vida com o emprego de novas tecnologias fez com que todo o sistema acabasse por ruir e ainda bem.

Os olivais quando não arrancados, foram praticamente abandonados. Árvores decrépitas, trabalho de limpeza (poda) e a apanha do fruto a preços que não compensam o proprietário, motivaram o não accionamento por este dos mecanismos para a sua execução.

Dentro das nossas limitações, iremos então ver como as coisas se passavam.

***

Para a apanha da azeitona e por falta de trabalho nas suas regiões, vinham para o Bairro, no mês dos Santos (Novembro), no dizer deste povo grupos de trabalhadores de Caldas da Rainha, Porto Mós, Alcobaça, Óbidos, Leiria, Figueiró dos Vinhos e de outras zonas.

Além do salário, variável de ano para ano conforme a abundância da colheita e procura de pessoal, tinham direito a “comedoria” fixa que constava de três litros e meio de legumes e meio litro de azeite, por semana, aos homens e metade destas quantias para as mu8lheres. Além disso o patrão fornecia gratuitamente uma esteira para cada duas pessoas (o capataz tinha direito a uma esteira), lenha, louça e sal.


[Olival acabado de poder. Quinta da Granja. Foto JV. 1988]

Estes trabalhadores conhecidos na freguesia e região por serrenhos ou serranhos, comiam e dormiam no quartel ou “casa da malta”, grande casarão dividido em três compartimentos, um destinado aos homens, outro às mulheres e o terceiro era a cozinha onde havia uma grande chaminé para cozer os legumes, no mesmo caldeiro, e um forno para o pão, muitas vezes de milho, proveniente da farinha que traziam das suas terras.

A cada grupo de trabalhadores angariados pelo capataz, que por todos respondia perante o patrão, dava-se o nome de “rancho”que constituía uma unidade e era normalmente da mesma zona, havendo quase sempre laços familiares entre alguns dos seus elementos.

Era usual um rancho servir vários anos o mesmo patrão e o capataz, muitos mais, chegando mesmo essa missão a passar de pais para filhos.

Vinham quase sempre a pé, só as bagagens tinham direito a transporte na galera ou outros veículo similar.

De um modo geral, todas as quintas da freguesia recebiam o seu “rancho” e ainda hoje se podem ver nalgumas os quartéis desactivados.

***
A apanha era feita entre Novembro e Janeiro, condicionada à maturação e outros factores. Sempre que possível os ranchos procuravam regressar às suas terras antes do Natal.

Ainda o sol não era nascido, o capataz tocava o búzio, o que significava ser horas de levantar. A cozinheira, uma serrenha escolhida para essa função, já tinha os legumes cozidos. Cada qual juntava o que lhe podia e assim almoçavam.

Lá seguiam a caminho dos olivais. Elas de lenço amarrado para proteger do frio, saia de ganga, ou cotim, sapatos de cabedal atacados e cardados, as cestas de verga, formando grupos e os homens seguiam normalmente atrás, de varas ou varejões (de eucalipto) ao ombro, panos e quando necessário, alguma escada.

O búzio, ora tocado intermitente, ora prolongadamente, originava um som inconfundível e nostálgico. Ouviam-se vários búzios o que provocava um buziar retumbante.

Para mais fácil apanha, os homens raspavam o chão, com enxadas, por baixo da copa, o que formava um círculo.

As varas e varejões para os ramos mais altos, manejados com perícia ao longo das pernadas em movimentos vibratórios que originavam um barulhar característico, iam fazendo cair a preta azeitona apanhada pelas mulheres que antes de iniciarem o trabalho, “pregavam” com alfinetes as saias, formando uma espécie de calças. Faziam-no para se sentirem mais à vontade pois além da posição dobrada que tinham de manter, por vezes era necessário subir às oliveiras para “ripar” isto é, fazer passar o polegar junto do indicador nos cachos o que provoca a queda da azeitona para uma cesta, não se maçando. Esta azeitona era destinada à conserva em salmoura.

A ligeireza das apanhadeiras que trabalhavam simultaneamente com ambas as mãos, era surpreendente, enchendo rápido as cestas de verga que o paquete, rapaz espigadote despejava no carro de bois, de eixo de pau, conduzido pelo maioral (assalariado permanente) ao lagar.

Os duros trabalhos agrícolas motivaram uma necessidade de amparo que os ajudasse a vencê-los e era assim que aparecia o cantar, tão do agrado do nosso povo.

Na apanha da azeitona, assim acontecia. Os versos (quadras?) de entre velhinhas de muitos e muitos anos, transmitidas de pais para filhos, apareciam novas, de improviso, ditadas por aqueles que a natureza dotou com o dom de saber rimar.

É notório o uso de termos da vida campesina, com evidência para “oliveira” e “azeitona”, muitas vezes invocadas. Feijoca e centeio, rãs e cabras, chocas e rodilhas, semear e apanhar, são algumas das palavras utilizadas que justificam a afirmação. Havia também “motes” feitos que se adaptavam com facilidade ao que se pretendia focar.

Os versos eram ritmados por uma espécie de acompanhamento, suavemente ondulante e que indicaremos na primeira quadra, como exemplo.

A “doce ingenuidade amorosa” tem naturalmente um lugar preponderante. Vejamos como está representada:

1
Os olhos do meu amor
Ai, solidão, solidão
São duas azeitoninhas,
Ai. ai ai, ai ai.
Fechados são dois botões,
Ai solidão, solidão.
Abertos, duas rosinhas,
Ai, ai ai, ai ai.

2
Os olhos do meu amor
... ... ... ... ... ...
São dos que nunca me esquecem
... ... ... ... ... ...
Quanto mais vezes os vejo
... ... ... ... ... ...
Mais bonitos me parecem
... ... ... ... ... ...


3
Semeei salsa na água
... ... ... ... ... ...
Nasceram-me campainhas
... ... ... ... ... ...
Nem os teus olhos me enganam
... ... ... ... ... ...
Nem as tuas palavrinhas
... ... ... ... ... ...


4
A azeitona já está preta
... ... ... ... ... ...
Está capaz de dar aos tordos
... ... ... ... ... ...
Diga-me lá ó minha menina
... ... ... ... ... ...
Como vamos de amores novos (?)
... ... ... ... ... ...

Quando as tentativas de derriço eram mal sucedidas, o resultado transpunha-se para os cantares, acontecendo por vezes ter um significado oposto, uma vez que a arrogância e a não cedência às primeiras, era sinal de “grandes colidades”.
As quadras seguintes, exemplificarão:

5
Anda cá ou cara feia
... ... ... ... ... ...
“Redilha” de chaminé
... ... ... ... ... ...
Se esta casa fosse minha
... ... ... ... ... ...
Corria-te a pontapé
... ... ... ... ... ...

6
Tenho uma terra no campo
... ... ... ... ... ...
Semeada de centeio
... ... ... ... ... ...
Anda cá burrinha nova
... ... ... ... ... ...
Quer te quero pôr o freio
... ... ... ... ... ...


A rapariga respondia muitas vezes com as quadras seguintes:

7
Tenho uma terra no campo
... ... ... ... ... ...
Semeada de feijoca
... ... ... ... ... ...
Anda cá boi matreiro
... ... ... ... ... ...
Que te quero pôr a choca.
... ... ... ... ... ...

8
Tenho uma casa no campo
... ... ... ... ... ...
Trancada a sete trancas
... ... ... ... ... ...
Tenho lá uma burrinha deitada
... ... ... ... ... ...
Que zurra como tu cantas
... ... ... ... ... ...



[Quinta do Freixo, 1986. Foto JV]

Cortando o despique, apareciam de bocas mais idosas e sisudas, algumas “quadras” de índole religiosa como as duas que a seguir indicamos:

9
Apanhemos a azeitona
... ... ... ... ... ... ...
Que tem (n)o azeite dentro
... ... ... ... ... ... ...
Alumia toda a noite
... ... ... ... ... ... ...
O Divino Sacramento
... ... ... ... ... ... ...


10
O cantar é para espalhar
... ... ... ... ... ... ...
O cantar é uma loucura
... ... ... ... ... ... ...
No cantar peço a Deus
... ... ... ... ... ... ...
Que me dê sua Ventura
... ... ... ... ... ... ...


Ainda que fossem muito usadas as de sabor erótico, se assim se pode dizer, só foi possível recolher uma e em circunstâncias muito especiais.
Todas conheciam, mas diziam que não.

11
Eu quero-te tanto tanto
... ... ... ... ... ... ...
Mais do que a mãe que te criou
... ... ... ... ... ... ...
Por muito que ela te queira
... ... ... ... ... ... ...
Não te dá o que eu te dou
... ... ... ... ... ... ...


A saudade das terras de origem, também é manifestada nos cantares.

12
Minha terra, minha terra
... ... ... ... ... ... ...
Ela ali e eu aqui
... ... ... ... ... ... ...
Os anjos do céu me levem
... ... ... ... ... ... ...
Para a terra onde eu nasci
... ... ... ... ... ... ...


13
Minha terra é Usseira
... ... ... ... ... ... ...
Não nego a minha nação
... ... ... ... ... ... ...
Eu não sou como você
... ... ... ... ... ... ...
Que é de lá e diz que não!
... ... ... ... ... ... ...


Misturando a azeitona com outros interesses, cantavam:

14
Azeitona miudinha
... ... ... ... ... ... ...
Apanhada uma a uma
... ... ... ... ... ... ...
Estes rapazes de agora
... ... ... ... ... ... ...
Não têm vergonha nenhuma!
... ... ... ... ... ... ...


15
A azeitona miudinha
... ... ... ... ... ... ...
Que azeite pode render
... ... ... ... ... ... ...
É como homem com pouca barba
... ... ... ... ... ... ...
Que vergonha pode ter!
... ... ... ... ... ... ...


Terminaremos com quadras dedicadas ao cantar:

16
A cantar ganhei dinheiro
... ... ... ... ... ... ...
A cantar se me acabou
... ... ... ... ... ... ...
O dinheiro que é mal ganho
... ... ... ... ... ... ...
Água o deu, água o levou
... ... ... ... ... ... ...


17
Tenho um saco de cantigas
... ... ... ... ... ... ...
E uma cesta até ao arco
... ... ... ... ... ... ...
Vou cantando as da cesta
... ... ... ... ... ... ...
P’ra não abrir a boca ao saco.
... ... ... ... ... ... ...


Com estes cantares simples, o rancho arranjava energias e disposição para vencer o duro trabalho a que era submetido.

Pelo meio-dia voltava a tocar o búzio para a merenda, refeição muito leve constituída por uma “bucha”.

Ao pôr-do-sol era o regresso ao “quartel” onde já horas antes tinha chegado a cozinheira para preparar a ceia, última refeição e semelhante ao almoço.

Cada qual aproveitava o pouco tempo que dispunha para efectuar algumas tarefas, como o lavar da roupa, muita vezes feito à luz da lanterna de petróleo, nalgum ribeiro próximo que a época invernosa fazia correr.

Era frequente dançar-se (ainda havia forças para dançar!) ao som da gaita-de-beiços pois normalmente havia no rancho um tocador.

O “ballho” era entre os serrenhos, mas havia rapazes da terra que conseguiam ganhar a confiança do capataz e também entravam na dança. Não eram muito e normalmente a sua presença era mal vista pelos mancebos do rancho.

Dois ou três dias antes da adiafa, começava o reboliço no rancho, tratava-se de cumprir um velho “ritual”, fazer bater as mulheres com o traseiro no pé da oliveira!

Enquanto havia quem se resignasse e não opusesse resistência, outras, tornavam-se rebeldes e opunham-se tenazmente, sendo necessário mobilizar os homens mais fortes para as levarem de vencida e cumprirem a tradição.

Algumas eram bem conhecidas pelas dificuldades que apresentavam e o cerimonial tinha de ser bem preparado, sendo apanhadas de surpresa.

Restava a adiafa!


Deixando meia dúzia de bagos nas oliveiras o rancho apanhava-os no dia seguinte e por volta do meio-dia regressava ao “quartel”. Agregados ao símbolo da festa, a bandeira da adiafa, enfeitada com fitas e flores. Tocando e cantando, eram recebidos pelo patrão que lhes pagava o dia inteiro e lhes oferecia comer e beber, não esquecendo fritos regionais, água-pé e vinho.

Comiam, bebiam, cantavam e dançavam, versejando em quadras alusivas ao patrão e familiares.

***
Muitas serrenhas acabaram por ficar na freguesia, constituindo família e ainda há pouco anos as que restavam, não tinham perdido essa designação, o que para a gente local era considerado depreciativo.

Havia natural rivalidade entre serrenhos e varzeenses. Estes não podiam esquecer que aqueles provocavam a descidas das suas jornas. O que para uns era “bom”, era para outros “mau” e isto devido aos condicionalismos regionais.

Tudo isto, como já dissemos, é passado. Não mais voltarão os jornaleiros ao trabalho de sol a sol e a outras situações de injustiça.

Os olivais que restam, estão condenados, contudo o Bairro continuará a ser uma região ideal para a olivicultura. Os processos, em todos os aspectos, têm de mudar e ainda não chegámos lá!

N.I.
Uma palavra de agradecimento para as varzeenses, senhoras Júlia Glória Martins, Guilhermina da Graça Nunes e Rosa da Piedade Pereira que em tempos nos deram muitos elementos sobre o assunto e que nos tiraram dúvidas, já que viveram bem de perto estes trabalhos.