domingo, 14 de março de 2010

Dona de casa

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 24 DE FEVEREIRO DE 2000)

[Av. dos Combatentes (Pátio do Frade)]

A última MEMÓRIA que aqui escrevi, foi publicada em 18 de Março de 1999. Como o tempo passa! Já lá vai quase um ano. MEMÓRIA que não foi bem uma memória mas sim uma pequena achega sobre as árvores do Meu Bairro.

No último dia do ano e uma vez em Santarém, não deixei de visitá-las numa rápida escapadela.

O decorrer da vida, sem sabermos bem porquê, mas certamente com algum fundamento, traz-nos à memória situações que vivemos directamente ou que conhecemos de um contacto mais ou menos próximo.

Esse facto ou episódio que nos aflorou, de seguida ou dias depois leva-nos a outro dentro do mesmo âmbito e depois mais outro pelo que começamos a puxar pelo fio e começa a reproduzir-se algo com alguma ligação. Faz-se mais um pequeno esforço e se não é hoje, é amanhã que surge mais uma peça para completar o quadro.

Como já viram pelo título, a MEMÓRIA de hoje tem a ver como se desenrolava a vida de uma DONA DE CASA no meu BAIRRO há cerca de cinquenta anos.


*
Igualdade para a esquerda, igualdade para a direita, já chegou ao Ministério da Igualdade!

É verdade que, ainda que estejamos com diferenças consideráveis, já se deu um grande e útil salto mas... ainda falta muito para andar.

À DONA DE CASA, como era então designada a mulher do então CHEFE DE FAMÍLIA, começava por lhe competir fazer a gestão (como se diz hoje) de um normalmente débil salário. Chegar ao fim do mês, sem saldo negativo, não era fácil.

Só bem mais tarde se juntaria ao salário do homem da casa, o dos filhos que por volta dos onze, doze anos, após o exame da 4ª classe (e muitos não o faziam), procuravam arranjar um ofício, por vezes igual ao do pai mas sempre que possível melhor, que tivesse mais saída e fosse melhor remunerado. Nos primeiros anos, era para aprenderem, começavam sem ganhar nada e depois o recebido não dava para a roupa e calçado. Quando começavam a ganhar alguma coisa que se visse, pouco ajudavam o orçamento familiar visto entretanto constituírem família.

Para que o saldo não fosse negativo, a DONA de CASA tinha de fazer grande ginástica e sacrifícios que passavam despercebidos aos filhos e nalguns casos ao próprio marido. É preciso tomar bem nota que as faltas faziam-se sentir sempre e em primeiro lugar na mãe, na DONA DE CASA como então se dizia. É uma boa DONA DE CASA, era frase feita mas nem todas a mereciam. Ser boa DONA DE CASA era saber administrar o salário do marido, saber cozinhar com equilíbrio, ter conta na mão ao deitar o azeite no tacho ou na panela, descascar as batatas deitando fora o mínimo possível, contar bem os elementos para que nada se estragasse ou deitasse fora.

Tinha de saber fazer tudo com perfeição dentro da sua casa:- lavar a roupa (o sabão tinha de endurecer para se gastar menos), passar a ferro, cozinhar, caiar, costurar, lavar a casa, tratar dos filhos, ser enfermeira e muito mais.

De uma maneira geral, era a primeira a levantar-se em casa preparando o pequeno almoço para o marido e filhos quando já tinham obrigações de escola ou de trabalho. Ela é que sabia as quantidades a fornecer e tudo isto com o espírito de equilíbrio. Era sempre a última a servir-se.

[Fogareiro a carvão]

O fogareiro de carvão tinha sido aceso com a ajuda da carqueja, vendida por uma velhota que vivia nos campos das redondezas, para lá da carreira de tiro. Carregando do produto uma pequena burrinha castanha, percorria as ruas do bairro que na altura não eram tantas como hoje, ou pelo menos havia muito terreno para construir.

De feições miúdas e seca de carnes, de pele enrugada e um pouco encurvada. de lenço pela cabeça cobrindo os cabelos alvacentos, vestia sempre de preto.

Não tenho presente, mas o preço do molho não ultrapassava os dois tostões. Quando era para o fim, os últimos molhos eram mais baratos pois ia-se fazendo tarde para regressar a casa e queria acabar com a carga. A mesma mulherzinha tinha épocas em que aparecia a vender queijo fresco.

Lembro-me perfeitamente do tamanho dos molhos e da sua cor verde escura a atirar para o castanho. Eram atados por baraço vegetal.

Em casa havia sempre uma reserva de carqueja pois a sua utilização acelerava o atear do carvão.

Seguia-se o varrer a casa e fazer as camas que tinham enxergões de palha de centeio feitos por artífices a que se chamavam e chamam colchoeiros. Enquanto nas camas de ferro constituíam peça única, nas de madeira eram dois, ao lado um do outro. Sobre os enxergões assentava o colchão, normalmente de tecido às riscas, espécie de saco em forma de estreito paralelepípedo, que possuía ao centro uma abertura por onde a DONA DE CASA metia a mão para mexer e remexer as camisas, que era a designação que tomava a palha de milho ripada. A sua substituição era periódica e tinha a ver com a utilização, possibilidades económicas e outros factores. De uma maneira geral, talvez o fossem de dois em dois anos. Compravam-se então, às vezes ao Manuel Serralha, dois ou três panos de camisas. Mais uma tarefa para a DONA DE CASA, a de ripar a palha com a ajuda das filhas ou das vizinhas. Da palha velha ainda se aproveitava a que estivesse em melhores condições, saindo a que já estava transformada em pó. De palha nova, ficavam a grande altura mas depressa acamavam.

A abertura central do colchão era fechada através de pares de nastros, que serviam de atacadores.

Em casas de maiores possibilidades, os colchões eram cheios de lã De custo muito mais elevado, tinham de ser de tempos a tempos despejados para a lavagem da lã que tinha de ficar uns dias ao sol, a enxugar. Havia uma grande desvantagem, muito quentes no Verão, mas apetecido no Inverno.

Lençóis e almofadas, invariavelmente brancos e nos melhores panos, bordados à mão.

Depois confeccionava-se a refeição, onde não faltava a sopa e depois, mais frequentemente, o peixe que na altura era mais barato do que a carne. Desta, além do que se podia criar no quintal, aves de capoeira principalmente para a utilização de ovos e coelhos, talvez a de porco fosse a mais utilizada, com relevância para os enchidos.

Os pratos eram sempre feitos pela DONA DE CASA que começava por servir o chefe da família. Ela era sempre a última, reservando para si os piores bocados.

Lavava a louça utilizando dois enormes alguidares de barro vidrado de tons melados ou esverdeados. Um destinava-se à lavagem propriamente dita, o outro para enxaguar. Acontecia que o talher, principalmente os garfos e as facas, depois de lavados e enxugados, tinham de passar por outra operação, aborrecida de executar - serem lixados para ficarem brilhantes. Onde estava o inoxidável?!

Normalmente cabia às filhas esse trabalho (digo filhas e não filhos) que antes do executarem deitavam a seu lagrimazita.

O arear de tachos e panelas já competia à DONA DE CASA. O esmalte misturava-se com o alumínio. As frigideiras, muitas vezes de ferro e a grande preocupação do seu interior ser bem limpo e areado. Ainda era muito vulgar o uso da louça de barro vidrado, principalmente frigideiras, tachos e tabuleiros para ir ao forno, na altura de lenha.


[Fogão a lenha]
As tardes não tinham uma utilização uniforme. Umas eram utilizadas para a lavagem da roupa que numa fase mais antiga era feita numa selha, vaso redondo de madeira com aduelas suportadas por aros de ferro. Havia uma tábua para a roupa ser esfregada, impregnando-a de sabão azul, consistente. Determinada roupa, mais suja e grosseira, ficava em potassa de um dia para o outro. Só mais tarde apareceram os tanques feitos de cimento e considerado um luxo, grande ambição das DONAS DE CASA.

Após a secagem que se realizava em arames estendidos nos quintais, era recolhida, separada e dobrada para a passagem a ferro que normalmente se realizava de noite, por vezes quando a família já dormia.

[Fogareiro a petróleo]

Passava-se em cima de um cobertor velho colocado numa mesa. Tábuas e de madeira, muito poucas existiam.

O ferro, com pega de madeira, tinha de ter a sua base bem lisa e polida, o que era feito através da passagem de lixa as vezes que fossem necessárias. No interior colocavam-se as brasas de carvão a fim de o aquecer à temperatura adequada nem sempre fácil de obter. Quando as brasas esmoreciam era necessário avivá-las com o abano. O grande problema dava-se quando saltava uma fagulha que ia queimar a peça que se estava passando, fazendo-lhe um buraco.

Seguia-se a tarefa de pregar os botões que faltassem e “dar uns pontos” onde se tornasse necessário. Passajavam-se as meias com o auxílio de um ovo de madeira, hoje, quando aparece um buraquito, deitam-se fora. As passagens tornavam-se em verdadeiros cerzidos.

Quando o orçamento permitia, compravam-se tecidos com que se faziam, desde saias a camisas, passando por tudo o que era necessário numa casa. Pouco ou nada existia feito.

Os enxovais dos bebés, tinham origem nas mãos das mães, incluindo as peças tricotadas com agulhas de lã, tão necessárias.

Noutros dias, lavava-se o chão com sabão de amêndoa (amarelo), tarefa para a qual se usava uma pequena peça de madeira que podemos definir como sendo um prisma triangular de cerca de meio metro de comprimento e de quinze a vinte centímetros de aresta, uma delas sofrendo leve abaulamento. Esta face era completamente aberta. Era aqui que a DONA DE CASA se ajoelhava para ir executando o árduo trabalho, mudando-a conforme a necessidade.

A mesma peça utilizava-se para as casas enceradas e aqui o trabalho talvez fosse mais violento. Primeiro raspava-se a cera que por ser velha estava suja e depois com um pano dava-se nova mas isso, não chegava, havia que puxar o lustre, com as mãos e panos de lã. Ainda não era o tempo dos enceradores eléctricos, pelo menos, pelo MEU BAIRRO.
Ainda não está esgotada a actividade da DONA DE CASA. Competia-lhe igualmente fazer as caiações necessárias, uma vez por ano. Já havia casas estucadas, é uma verdade mas a maioria eram caiadas e mesmo as estucadas, o exterior e muros do quintal que quase todas tinham, caiavam-se.

Nas doenças, fazia de enfermeira de serviço.

Quando os pais estavam velhos e acamados (na altura não havia os lares que há hoje) só contavam as filhas para os cuidar, o que acontecia também em relação aos sogros pois ia ocupar o lugar do marido - as noras alinhavam ao lado das filhas, em pé de igualdade nos trabalhos.

E quando havia morte na família? Com luto rigoroso a DONA DE CASA tratava de tingir em grandes panelões e a lume de lenha, as roupas necessárias para todos poderem vestir de preto, como mandava o uso e a tradição.

Responsável por tudo isto, se possível, ainda o era mais pela criação dos filhos. Quantos homens de então mudavam as fraldas aos filhos? Nenhum, eu pelo menos não conheci. Mesmo que o homem o pretendesse fazer, a mulher não o consentia pois aceitava essa obrigação e não queria que o marido ficasse mal visto, como então se dizia. Seria um escândalo, para ele e para ela!

Não esgotei as tarefas que competiam à DONA DE CASA no MEU BAIRRO à cinquenta anos, mas dei uma ideia aos novos que as desconheciam e que certamente ficarão de boca aberto.

A vida mudou muitíssimo, a mulher começou a sair de casa para trabalhar e nos primeiros tempos ainda foi maior vítima porque além de tudo o que já fazia, exercia a sua profissão.

A evolução da vida a isso levou e a pouco e pouco a mulher foi-se libertando até porque ser-lhe-ia impossível manter toda essa actividade sem a ajuda de todos da casa, marido e filhos. Enquanto ela faz as camas, ele trata do filho. Hoje os trabalhos são divididos mas ainda estamos longe da Igualdade a que dificilmente chegaremos.

A geração actual já funciona com alguma igualdade. Elas e muito bem, batem o pé nas tarefas caseiras e eles já vão alinhando porque as mães os foram preparando para isso.

Confesso que enquanto fui solteiro nunca fiz a minha cama, nunca descasquei uma batata, nunca lavei um prato, para não dizer estrelar um ovo.

Segundo as regras de então, essas tarefas não me competiam. Tudo igual aconteceu ao meu pai, como chefe de família, excepto uma coisa, o cozinhar que fazia por gosto de vez em quando, principalmente determinados pratos em que era exímio. Do resto, nada.

[Rua Padre Inácio da Piedade e Vasconcelos]

Fui criado neste ambiente mas aos vinte e um anos quando saí de casa para iniciar a minha vida, compreendi que as coisas não podiam ser assim e senti a necessidade de aprender a fazer as coisas de casa que competem tanto à mulher como ao homem, a designação de chefe de família acabou e muito bem e hoje as tarefas têm de ser divididas.

[Medidora]

Ainda fui a tempo de cozinhar para a minha mãe, fazer-lhe a cama, lavar-lhe a louça e a casa, dar-lhe banho.

Presentemente e já no ocaso da vida, sinto muito orgulho de saber fazer tudo numa casa e de ajudar nas tarefas a minha mulher. Se não faço mais é que ela não gosta muito do meu trabalho, que considera imperfeito, excepto a culinária, tarefa que me passa sempre que pode.

Se à gente da minha idade e do MEU BAIRRO eu fiz recordar coisas que sabe tão bem ou melhor do que eu, se algum jovem ler este escrito, pensará duas vezes e ficará a conhecer a vida da sua avó, mesmo sem ela lhe a ter contado, isto se não pertencia aos extremos da sociedade. O MEU BAIRRO era habitado quase exclusivamente por gente do povo, operários, empregados por conta de outrem e funcionalismo público. Havia uma ou outra bolsa de pobreza que não alcança os parâmetros que acabo de caracterizar, tal como em sentido inverso havia quem vivesse muito bem.