domingo, 21 de março de 2010

Um baile da pinhata

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 28 DE ABRIL DE 2000)

É a trigésima sétima MEMÓRIA que pretendo escrever, ainda que o seu conteúdo seja limitado.

Não me perguntem porque me lembrei de tal, mas a verdade é que a ideia apareceu e aparentemente sem saber porquê, foi tomando volume e pretende concretizar-se.

No fundo, lá bem no meu íntimo, estava um pequeno grão que isolei, seguramente, durante mais de cinquenta anos e que agora, depois de tanto tempo, acabou por germinar.

Bailar e dançar foi sempre um folguedo apetecido, tanto pela gente do povo, como pela burguesia e nobreza.

Há conhecimento de sumptuosos bailes dados em França por Carlos V e Carlos VI, isto só para indicar os mais antigos. Em Portugal, por ocasião da boda de D. João I com D. Filipa de Lencastre, realizou-se no Paço do Porto, o primeiro baile na Côrte.

Com o liberalismo, deu-se a democratização do divertimento e começam a aparecer os salões de dança, principalmente na capital.

Pela província, as associações e de características mais variadas, optam pela realização de bailes nos quais conseguem, muitas vezes, adquirir fundos para suporte das mesmas, já que muitas viviam com dificuldades financeiras.

Por estas alturas e reporto-me aos finais da década de quarenta, que eu me lembre, por ouvir dizer, realizavam-se grandes bailes no Clube de Santarém, por vezes na Associação Académica, frequentemente no Grupo de Futebol Empregados no Comércio (vulgo Caixeiros) , no Teatro Taborda (hoje Círculo Cultural ...), na Sociedade Recreativa Operária e no salão dos Bombeiros Voluntários Tinham fama igualmente os bailes realizados na Ribeira de Santarém, no Clube Ribeirense e no Sporting Ribeirense.

Ainda que tivessem lugar todo o ano, havia épocas próprias, como os bailes de máscaras, pelo Carnaval, para comemorar a fundação da associação ou os bailes da pinha ou pinhata que tinham lugar no primeiro Domingo da Quaresma.

A arrumação das clientelas fazia-se tendo em conta o extracto social a que se pertencia, o que na época era ainda muito frisante.

Em zonas mais conservadores do País, nos anos sessenta e nas festas chamadas populares, ainda o senti, o que então me fazia confusão. Existiam dois recintos para dançar, dando apoio a um, o melhor apetrechado, a chamada “barraca do chá” e ao outro, a “barraca do caldo verde”.

Se é verdade que o acesso estava aberto a toda a gente, provocava-se a diferença de ambiente e ... de preços !

Por volta dos meados dos anos cinquenta, conheci quase todos estes ambientes da cidade, ainda que na altura não fosse bailador ou dançarino. Mas a MEMÓRIA que pretendo avivar é anterior e situa-se, como já se deu a entender, nos finais da década de quarenta.

Como referi na minha MEMÓRIA - VII, de 15 de Janeiro de 1993, os Santos Populares eram fortemente festejados no MEU BAIRRO, sendo a Travessa (ou Rua) de José Paulo a única que pedia meças aos festejos. Eram naturalmente os jovens que os faziam, mas a colaboração da gente madura, por todos os motivos tornava-se, na concepção da época, imprescindível - sem ela, nada feito.


Num ano, que não posso precisar mas se situa no espaço que indiquei, um grupo de raparigas do MEU BAIRRO, no qual se incluia a minha irmã mais nova, resolveu organizar-se para fazer um baile particular, da Pinhata.

Eu teria os meus dez anos e como tal não tinha conhecimento dos meandros da organização mas alguma coisa ia observando e que afinal me ficou na MEMÓRIA.

Não era fácil obter a colaboração dos pais pelas razões mais diversas. Os pais das moças, quando não entravam no jogo, tinham de saber com antecedência a quem o assunto estava entregue para assim autorizarem as filhas a estarem presentes e a prestarem a sua colaboração.

Nestes assuntos, a minha mãe era muito solicitada pois tinha habilidade de mãos, fazendo com papel “ventarolas” e outras peças de interesse decorativo (tenho alguns moldes que não sei aplicar), sabendo mesmo decorar e pôr a funcionar a pinha (ou pinhata) que era o móvel daquele baile.

Lembro-me bem da sua tentativa de fazer abortar o projecto que lhe apresentavam, mas resolvidos outros problemas e depois de ter sido “picado” pela minha irmã para choramingar à sua volta, acabou por aceder, dizendo que era a última vez que o fazia.

Além das características que apontei, a minha mãe que conhecia toda a juventude do bairro, era uma mulher com grande sentido de equilíbrio e que não consentia a mais leve falta de respeito, fosse e quem fosse. Por outro lado, estava sempre disposta a prestar o seu auxílio, quem dele necessitasse, fosse a que horas fosse - batiam à janela do seu quarto e levantava-se logo para socorrer quem necessitasse.

O baile realizou-se numa casa situada a meio do último quarteirão da Rua Almeida Garrett, do lado direito como quem vem do hospital velho. Aí morava uma amiga da minha irmã, com os pais e mais três irmãos, sendo o mais novo da minha idade.

Pouco me lembro dos participantes e de momento veio-me à memória a presença de duas raparigas amigas de minha irmã que já não consigo localizar mas que penso a mais velha chamar-se Elvira e a mais nova ser muito morena!

O que me lembro muito bem é que coube à minha mãe a ornamentação e a engrenagem da abertura da pinhata que se fazia através de fitas de seda de várias cores e larguras (penso que eram levadas pelos convidados) e se juntavam num molho, tendo cada, uma argola na ponta.

Preparou-se um trono e foi a minha mãe que fez as coroas, forradas a papel de prata, para os reis, aqueles que abrissem a pinhata.



Num quarto fechado, as mães presentes decidiram qual a fita que iria abrir a pinha. Meti-me lá num cantinho e quando foi dado pela minha presença, alguém levantou o problema mas a minha mãe disse que tinha confiança em mim e disse-me: - livra-te ... se disseres a alguém (...).

A fita que abria era estreita e azul claro e havia mais do que uma.

Lembro-me de a minha mãe dizer que só esperava que não fosse a filha a abrir a pinhata.

Calculando a minha irmã que eu saberia do segredo e juntamente com o seu par (não tenho a certeza quem era), apesar da minha primeira resistência, não foi difícil convencer-me até porque eu gastava afinal que fosse ela a rainha!

As fitas eram muitas, mas à terceira tentativa a mana puxou a fita, a pinhata abriu saindo um casal de pombos brancos!

A minha mãe ficou pior que estragada!

Se tem sabido da inconfidência, eu e a minha irmã teríamos levado uma tarei das rijas - não havia ninguém que nos salvasse.

Nunca tive a coragem de lhe fazer tal confissão, apesar de muitos anos passados!

A MEMÓRIA funcionou mais uma vez!