domingo, 23 de maio de 2010

Os toiros

Às três da manhã acordei e a insónia instalou-se. As tentativas para a debelar, foram infrutíferas.

Quase sem querer, comecei a recuar no tempo, fui parar à minha meninice e adolescência e consequentemente ao MEU BAIRRO. E tudo isto acontece porque gosto de recordar os meus progenitores, é a maneira de matar saudades.



Santarém é conhecida, entre muitas outras coisas, por ser terra dada aos toiros com relevância para os seus forcados. Ora no MEU BAIRRO como não podia deixar de ser, havia aficionados.

Uma das preferências dos miúdos era brincar às touradas, para o que estabeleciam regras. Os “burladeros” eram as portas da área demarcada. O toiro, figura escolhida por um de nós e era desempenho muito disputado, saía de um corredor dos muitos então existente no MEU BAIRRO e que davam normalmente acesso a habitações, algumas constituindo pátios e quintais. Mas alto, o toiro só saía após o toque feito pelo cornetim, possivelmente o mais hábil para tal missão, na oportunidade, colocando as mãos como se estivesse a tocar o instrumento de sopro.

Havia os cavaleiros montados em canas, por vezes com chapéus de jornal quando havia tempo para os fazer, peões de brega (capinhas) já que espadas eram todos e todos bandarilhavam.

O toiro tinha que actuar um pouco curvo, de braços hirtos, tentando imitar os cornos, marrar a direito, por isso com “nobreza”, possibilitando os passes dos artistas, berrar e raspar a terra, imitando os cornúpetos. O pior era quando o boi que queria ser o mais bravo possível, deixava de cumprir as regras e começava a distribuir socos por todos que apanhava no redondel. Quando o cornetim tocava para a unha, eram todos forcados, caindo tudo numa molhada.

A rapaziada sentava-se no lancil do passeio para descansar, comentar os factos ocorridos e discutir. Forças recuperadas, nova toirada se organizava e com novo toiro!
Uma coisa que nos fascinava, eram as farpas verdadeiras devido ao colorido do papel e aos diferentes feitios das franjas. Havia um dos miúdos que era louco por elas e que conseguia arranjá-las, mas sem ferro. Ouvia dizer e parece ser certo que o artista que as fazia era um indivíduo a que chamavam, por alcunha, o Patetinha. Ora o nosso amigo de infância dizia que era o Patetinha e acabou por lhe ficar o Pateta, o que no sentido literal da palavra, nada tinha a ver com ele, pelo contrário.

Era este o desporto radical, com o qual os nossos pais não gastavam um tostão. Agora, os seus bisnetos, já não brincam às touradas, utilizam skates, patins em linha. BTT, pranchas de surf, etc. e quando assim é, já não é nada mau.

Os miúdos do MEU BAIRRO, pelos mais variados motivos, em que se incluem entre outros, a falta de espaços, os familiares deslocados no trabalho, o perigo que a própria rua constitui, (trânsito, roubo, etc.) por exemplo e até a actual concepção de vida, já não permite que os actuais miúdos do MEU BAIRRO queiram ou gostem de brincar aos toiros.

Falámos dos mais pequenos. E os outros, um pouco mais velhinhos e que começavam a entrar na adolescência?

Ainda que não nos escorraçassem, já não nos admitiam nos seus entretenimentos. Ficávamos muitas vezes a ouvir e a ver - já não era mau ! Éramos todos amigos e hoje quando nos encontramos é motivo de grande satisfação.

O ídolo taurino que acabava de desabrochar, era Manuel dos Santos. Lembro-me de o ver tourear, uma única vez e levado pela mão de meu pai, na velha e desaparecida praça de Santarém, em S. Domingos.

Todos queriam ser como o Manuel dos Santos, todos pensavam que eram capaz de fazer o que ele fazia!

Arranjaram uma tourinha (nós dizíamos tourina) isto é, uma armação suportada por uma roda, no caso penso que de bicicleta em cuja frente tinha fixados os cornos de um toiro. Logo a seguir estava um bocado de cortiça reforçado e a parte traseira rematava com dois braços para que uma pessoa a pudesse mover. Tratava-se por isso da simulação de um toiro e que se destinava a treinos. Possivelmente havia alguém que orientasse os treinos, mas se havia não me lembro de quem seja A cortiça servia para fixar as bandarilhas.



Talvez depois de terem ensaiado e medido alguns passes com a tourina, teriam- -se sentido mais seguros e se lembrarem de pôr pés ao caminho e ir para a Ponte Asseca, margens do afluente do Tejo onde pastava então gado bravo que penso seria propriedade de algum lavrador do Vale de Santarém.

As coisas parece não terem decorrido bem pois os campinos, conscientes da sua missão, evitaram que pudesse ter surgido complicações desagradáveis. Lembro-me bem do alvoroço que houve no MEU BAIRRO quando se soube do que se tinha passado, com as mães todas aflitas procurando pelos seus filhos. Mais de meio século já lá vai, pelo certo!

Já na minha juventude, primeiro nas picarias das redondezas, com destaque para as da Ribeira de Santarém e depois nas primeiras Feiras do Ribatejo, entre muitos outros, José Pança que morava no MEU BAIRRO, pegava ou agarra toiros conforme lhe dava jeito!
Aqui fica mais esta pequena MEMÓRIA que o tempo vai corroendo na sua acção imparável.