quarta-feira, 5 de maio de 2010

Uma esmolinha ...

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 28 DE NOVEMBRO DE 2003)

Aqui estou novamente para mais uma pequena conversa com os possíveis leitores que eu sei que existem mas que é impossível quantificar.

Muitos dos jornais regionais, como é o caso deste “velhinho”, chegam aos quatro cantos do Mundo e são muitas vezes o único elo de ligação que se tem com as terras de origem e existem portugueses em todos os países do Mundo!

Por isto ou por aquilo, ali acabaram por se fixar e alguns ainda pensam regressar às terras de origem, o que muito não vêm a fazer pelos motivos mais variados.

Morreram os avós, morreram os pais, os irmãos e cada um seguiu a sua vida, um para aqui, outro para ali, as idas à terra começaram a ser mais espaçadas.

A casa onde fomos criados já não existe, os vizinhos já morreram e muitos dos amigos de escola igualmente desapareceram.


Quando vou à minha terra, é meu hábito calcorrear as ruas que ainda me são familiares, nomeadamente as do meu bairro. É muito raro conhecer alguém e reconhecer, não é fácil pois os anos de afastamento são muitos. Além de muitas das casas existentes, algumas em ruína, ficaram nomes de vizinhos e amigos e a vida vivida com as suas pequenas estórias.

Ao ler hoje um interessante artigo intitulado A Vida lisboeta nos séculos XV e XVI- Peditórios e pedintes, de autoria de Victor Ribeiro, publicado no Vol.VIII - Lisboa 1910 do Archivo Historico Portuguez, fez-me recordar o que se passava no MEU BAIRRO há cinquenta anos.

Como temos escrito muitas vezes, o MEU BAIRRO era habitado fundamentalmente por famílias modestas e trabalhadores, operários, trabalhadores no comércio e indiferenciados tal como o funcionalismo de base. Os industriais, comerciantes, profissionais liberais, a burguesia viviam ainda dentro do recinto que tinha sido amuralhado, em palácios ou casas apalaçadas de que restam alguns exemplares. Só depois apareceu o conjunto de vivendas que alguns mandaram construir para os lados de Santa Clara/São Bento.

A mendicidade foi e será sempre um flagelo e tem as mais variadas origens, algumas de contornos complicados. Pede-se para matar a fome, pede-se porque não se tem trabalho, pede-se porque não se quer trabalhar, pede-se porque não tem saúde para trabalhar, pede-se porque o que se ganha é insuficiente para a manutenção da família, pede-se para matar o vício do álcool, pede-se para alimentar a dependência da droga e ... há quem tenha essa actividade como profissão.

A maçaneta da porta faz-se ouvir (nesse tempo as campainhas eléctricas eram muito raras no Meu Bairro e não só) e lá vinha eu a correr saber quem era. Da própria porta, informava:- É um pobrezinho que pede uma esmolinha por amor de Deus. Diz-lhe que tenha paciência mas não pode ser. Havia dias que eram vários aqueles que batiam à porta, mendigando e não havia possibilidades de a todos contemplar.

Por vezes minha mãe mandava-me perguntar ao pobre se queria um bocado de pão e quando era afirmativo, o que normalmente acontecia, lá vinha eu buscar o pão que minha mãe cortava.

Quando o pobre nos impressionava por qualquer motivo, não dizíamos da porta quem era e pessoalmente íamos dizer que se tratava de um pobrezinho assim ou assado e dizíamos logo, dê-lhe alguma coisa, coitadinho. A impressão causada era muitas vezes a velhice, a maneira de falar ou o aspecto. Quando se apresentavam de cabelos compridos, longas barbas, de bordão na mão e de saco às costas, por vezes tínhamos medo.

Muitos deles era gente dos arrabaldes ligados ao campo e que devido à idade, já não tinham forças para trabalhar e nesse tempo não existiam pensões sociais como hoje e os filhos, o que ganhavam, não chegava para sustento dos filhos pois nem sequer todos os dias tinham jorna. Eram os próprios pais que, para aliviar os filhos e já não podendo trabalhar, resolviam pegar num bordão e, saco às costas, lá partiam esmolando de quinta em quinta, de porta em porta.

[Velho portão na Avenida do Meu Bairro.Foto JV]

Quando a dádiva não era pão, transformava-se numa pequena moeda na base dos vinte centavos que junto a outras, ia minorando a miséria.

A minha mãe, dentro das suas modestas possibilidades, foi sempre uma pessoa esmoler. Tinha cerca de meia dúzia de pobres certos, o que significava que todos os meses por lá passavam batendo à porta e que já não necessitavam de fazer o pedido que aparecia sempre dentro das disponibilidades. Já se lhe conhecia o nome e até a origem. Havia sempre uma troca de palavras a propósito da vida e dos seus desaires. Alguns fizeram isto durante anos. Quando deixavam de aparecer, notava-se a sua falta e admitia-se a sua morte ou então a dificuldade em se deslocar.

Ainda que a mendicidade fosse proibida, lá se ia fazendo. Os vagabundos eram apanhados e levados para o Albergue Distrital, trabalhando na quinta onde estavam instalados. Tinham uma farda de surrobeco onde não faltava o barrete. Ouvia-se na altura dizer muitas vezes, se não te portas bem vais parar ao albergue!

Lembro-me muito bem de um homenzinho que se tinha algum defeito era o de beber um copito a mais. Depois de umas fugas acabou por se habituar ao local e tinha o seu dia de folga e lá vinha ele a pé até à cidade, bebendo o seu copito aqui e ali. Toda a gente conhecia o Zé Caneco e havia sempre mais um copo. Quando regressava à Quinta, já não ia sozinho.

Hoje os albergues mudaram de nome e todos nós os conhecemos. A maioria espera, mais dia, menos dia, dar lá entrada, se houver vaga!