quarta-feira, 9 de junho de 2010

À borda do Tejo

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 18 DE ABRIL DE 2004)

[Ómnias]

É velha a romaria que os escalabitanos fazem em Honra de São José, protector dos operários, às Ómnias, no dia 19 de Março que desde 1977 é feriado municipal no concelho de Santarém.

Fi-la algumas vezes pela mão dos meus familiares nos meados da década de quarenta, princípios da seguinte, quando ainda tinha alguma expressão tal romaria que a pouco e pouco foi desaparecendo.

Após 1975 houve tentativa de revitalizar tal prática, ao ponto do dia 19 de Março passar a ser Feriado Municipal, mas disso só conheço o que li na imprensa local.

Quando eu era menino, várias famílias do meu bairro não deixavam de ir à romaria de S. José, como era o caso por exemplo da família Duarte com os seus sete elementos ou da família Pires, mais numerosa. Os vizinhos combinavam e partiam juntos. Os mais pequenos, como era o meu caso, ainda dormitavam, mas o fresco da manhã, espevitava-nos.

Atravessávamos a estrada das Padeiras, seguíamos pela travessa das Velhas que tinha um comprido muro de uma Quinta e que no outro lado tinha umas casitas onde moravam e vendiam carvão e seus derivados, duas velhotas, vestidas de preto, irmãs e que talvez fossem gémeas, o que não posso precisar. Daí nós lhe chamarmos a rua ou a travessa das Velhas e onde íamos comprar tão indispensáveis produtos, na época. Esta rua ia desembocar na Rua do Matadouro, mais propriamente na Avenida Laurentino (Veríssimo).

Depois de passarmos ao largo do Cerco de S. Lázaro, cortávamos à esquerda, seguindo a calçada da Junqueira.

Mas afinal não é sobre a romaria a S. José (ou das Ómnias) que nos propusemos escrever mas sim sobre os passeios à borda do Tejo.

Nessas alturas trabalhava-se todo o sábado, só o domingo era dia de descanso ou então algum feriado ou dia santificado. Nestes últimos, por vezes havia uma dispensa de chefes e patrões!

No MEU BAIRRO, no Verão, com a forte canícula, muitas famílias tinham o hábito de ir passar o dia livre à margem do Tejo, beneficiando da fresquidão dos banhos e das sombras que os salgueirais proporcionavam

O trajecto já o indicámos. A calçada da Junqueira era estreita e esburacada e a poeira era mais que muita. O que valia é que raramente passava um veículo automóvel (quando isso acontecia, ficava tudo branco). O tráfego era constituído por veículos de tracção animal e animais de carga e sela que já era suficiente para nos empoeirar.

Desejava-se a chegada à Fonte da Junqueira, do lado direito da estrada, com o seu enorme paredão de alvenaria, estruturado de pedraria e encimado por objectos decorativos de interesse artístico. Se a memória não me falha, eram quatro as bicas que continuamente deitava o precioso líquido que nos dessedentava. Ouvia logo dizer que bebesse agora porque depois escusava de pedir porque não havia! Então, enchíamos a barriga.

Não faltavam os tanques de pedra cheios para que os animais bebessem e recuperassem forças para continuar as caminhadas.

[Tejo e borda d`Água num guache de Vitor Faria]

Depois, para mim a sempre desejada passagem no túnel, sobre o qual passava o comboio e quando isso acontecia, era uma festa, o gritar de alegria, o adeus.

Estava-se próximo. Os homens, então chamados chefes de família, escolhiam o lugar para assentar arraiais, na margem do rio, e que nós designávamos por borda do Tejo. Procuravam-se sítios espaçosos, proximidade de água potável (havia quem bebesse do rio, fazendo um poço no areal) e onde os salgueiros proporcionassem boas sombras.

As famílias mais amigas ficavam sempre muito próximo para se proporcionar um melhor convívio. Depois da limpeza do terreno, as crianças entravam logo na brincadeira, correndo umas atrás das outras, sendo a areia uma atracção. Havia sempre limites fortemente impostos pelos pais por causa da proximidade da água, já que o Tejo era falso com as suas correntes e remoinhos.

Os homens construíam as suas fornalhas cavando a terra de aluvião que com a sua contextura compacta, isso proporcionavam. Depois era ir à lenha, tarefa em que gostava de ajudar e que consistia em recolher raízes e outra lenha que as águas iam trazendo e armazenando pelas margens, principalmente quando as invadiam.

Nas Ómnias, onde além de uma quinta existiam algumas construções dispersas e mesmo uma taberna, adquiriam-se nas hortas que povoavam a zona (ómnia significa precisamente horta, pomar de plantação variada) produtos hortícolas de boa qualidade e a preços inferiores aos do mercado.

Mesmo aqui, as sopas substanciais (legumes e hortaliças) não eram dispensadas pois eram elas que aconchegavam o estômago, como os pais diziam e... bem. Hoje comem-se pizas, hamburgueres e outra comida sintética!

Depois, como era “festa”, lá vinha o peixe assado (sardinha, bacalhau, então comida de pobres, fataça ou enguia, estes últimos adquiridos aos pescadores das Caneiras) e isto quando não se fazia uma caldeirada, o que era frequente. O vinho ia-se comprar à taberna que ainda fica longe e quando lá ia, calhava-me às vezes um pirolito, o que era uma alegria.

Comia-se e bebia-se sentado no chão onde se estendiam alvas toalhas. Banco, nem pensar, a não ser algum madeiro a jeito que aparecesse ou um tronco de árvore mais propício pela sua pronunciada inclinação. Levava-se o indispensável pois tudo era transportado a braços. As alcofas, metiam-se as asas numa vara para que dois as pudessem levar melhor, chegando mesmo, nas famílias mais numerosas a utilização de padiolas. A verdade é que todos tinham que ajudar.

Cantava-se, declamava-se, faziam-se jogos, mostravam-se habilidades, tudo com a presença e o olhar atento dos pais. Estes, jogavam às cartas enquanto as mulheres lavavam a louça no rio, com a ajuda das filhas mais velhas. Um ou outro entusiasta, aproveitava o tempo para pescar e raramente se fazia um passeio de barco, alugado a um pescador que sempre aparecia a oferecer os seus serviços. O banho era para os homens e rapazes feitos, os miúdos e o sexo feminino molhava os pés até aos joelhos. Dormir uma soneca, sabia bem.

[Caneiras, típica aldeia de pescadores]
Ao cair da tarde, arrumavam-se as coisas para o regresso ao bairro e agora, não se ia para a “festa” mas vinha-se da “festa” ! Além disso, era sempre a subir!

Há sessenta anos, as coisas eram assim. A vida muito difícil para quase todos. O pouco dinheiro que se ganhava, e era só um a ganhar, tinha que ser esticado. Não havia dinheiro para praia ou para férias. O Tejo era a praia dos tesos, como se dizia! Havia contudo um grande sustentáculo para ajudar a vencer as dificuldades da vida, era a existência da família. O bom e o mau era dividido e compartilhado por todos. O que se passa HOJE? Meditem.

Aqui fica mais uma MEMÓRIA DO MEU BAIRRO que o tempo ainda não diluiu. Até quando?