terça-feira, 15 de junho de 2010

Os casamentos

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 31 DE JANEIRO DE 1992)



[Igreja Matriz da Várzea antes do restauro. Foto JV]

Além de todos os motivos de interesse que os casamentos encerram, dos espirituais aos materiais, têm sempre dados etnográficos que é interessante conhecer.

Do norte ao sul do país, de região para região, encontramos (ou encontrávamos) mais ou menos pronunciadamente, diferenças, nem sempre situadas na mesma área.

A freguesia da Várzea e mais propriamente, todo o Bairro e até mesmo zonas circunvizinhas, apresentavam um casamento com características bem definidas e que rigorosamente se cumpriam.

Os anos rodaram e essas características, por diversos factores socioeconómicos, começaram a desaparecer. Hoje, pouco ou nada resta.

Pensamos, apesar de tudo, ter interesse para os vindouros saber como decorriam ou pelo menos conhecer os traços fundamentais dos casamentos dos seus avoengos.

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Os derriços ocorriam a caminho das fontes, nos trabalhos agrícolas e nos últimos tempos nos bailaricos de aldeia, onde as raparigas, sempre com as mães atrás, nunca faltavam, não fossem perder casamento.

Regra geral, os rapazes de uma aldeia iam procurar companheira a aldeias vizinhas.

Nessa época, para haver casamento, era necessário construir casa pois não existia com facilidade habitação para alugar. Era por isso, preocupação dominante do mancebo, conseguir terreno para a edificar.

Algumas vezes provinha da cedência por parte dos pais ou futuros sogros ou outros familiares, quando não oferecido, vendido simbolicamente. É uma das razões, entre outras, da existência de muitas casas isoladas pois na altura não se colocava o problema da energia eléctrica, água ao domicílio e outras infra-estruturas, afinal acabadas de chegar, podendo mesmo dizer-se que são dos nossos dias.

Era por isso o homem que dentro das suas possibilidades tinha de pôr de pé a casa que ia albergar a futura família.

Além das ferramentas necessárias para o trabalho, quase sempre agrícola, levava uma mala com roupa pessoal: calças, camisas, ceroulas, lenços e pouco mais.

[Torre sineira. Foto JV, 2010]Tudo o que era recheio da casa, competia à mulher que, quase desde que nascia, a mãe começava a fazer o enxoval, já que, para uma casa é preciso muita coisa e as despesas são grandes.

Nesses tempos, pouco ou nada se comprava feito. Quase tudo era confeccionado pela mão da mulher que bem nova ia aprendendo com familiares e vizinhas.

Além de estar preparadas para executar todos os trabalhos agrícolas (apanha da azeitona, mondas sachas, ceifas, etc.), era importante que soubesse fazer calças e camisas de trabalho para o marido e filhos, pôr uns fundilhos e remendar com perfeição.

Como já disse, o enxoval era quase todo feito pela mão da jovem que se punha ao despique com as raparigas da sua idade.

Faziam lençóis e almofadas, travesseiros e toalhas. Grande parte da roupa interior. Cobertas para cama, tapetes e almofadas de retalho como já referimos quando tratámos do artesanato. “Naperons” e rendas.

Os pais iam amealhando como podiam para fazer face às despesas da boda; louças, mobílias e o mais necessário.

Há cerca de trinta e cinco anos e em resposta à nossa discordância pela pouca divisão das despesas, a nossa interlocutora, que tinha tido a sorte, no seu dizer, de ter quatro rapazes, justificava: Elas (noivas) vão receber um homem que tem a obrigação de ganhar para elas uma vida inteira!

Era assim que as varzeenses justificavam o uso, o hábito e a tradição.

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[Um dos últimos casamentos, ao modo antigo, realizado na Várzea. Anos 60 do século passado]

Ao noivo competia dois padrinhos e à noiva uma madrinha que a vestia de branco, véu comprido e ramo natural da flor da laranjeira, se fosse caso disso e estivéssemos na época da floração.

[D. Cecília, uma das últimas cozinheiras de "casamento" e na altura já retirada. Foto JV, 1961]
Há cinquenta anos o noivo vestia de preto ou azul escuro, gravata de tom escuro, camisa branca e sapato preto.

Nos três dias antes do casamento os noivos faziam a “visita” aos padrinhos, levando-lhe uma travessa de arroz doce e meia dúzia de bolos de noivo. Às outras pessoas levavam um prato de arroz doce e dois bolos. A isto, correspondia sempre uma oferta monetária ou qualquer outra por parte de quem era contemplado.

À porta do quarto os noivos eram felicitados pelos convidados que os presenteavam e em troca recebiam bolos de noivo que levavam para suas casas.

A ementa baseava-se em produtos locais e naturalmente os pratos eram à base de carne – o tradicional carneiro ou borrego guisado com batatas e as aves de capoeira: galinhas, patos e perus corados nos fornos de cozer pão que na aldeia existiam.

[Portal da Igreja Matriz. Foto JV, 2010]De doçaria eram os bolos de noivo que pontificavam. Bolo seco em forma de ferradura, feito aos alqueires, guardava-se em arcas de castanho. Além disso, havia o arroz doce.

É dos nossos dias o aparecimento do pão-de-ló e sucessivamente a restante doçaria, mas o belo bolo de noivo nunca perdeu o seu lugar e parece ser a única reminiscência do casamento de outros tempos.

Durante a boda havia vivas aos noivos lançados pelos convivas, uns já muito conhecidos, outros, criados na altura pelos mais verbosos.

Damos dois exemplos:

Viva a noiva mais o noivo
Quando se lhe tira o chapéu,
No meio dos seus saberes
Parecem uns anjos do céu.

Estas casas estão caiadas,
Quem seria a caiadeira,
Foi o noivo mais a noiva,
Com um raminho de oliveira.


[Escadório onde contiuam a pousar noivos e convidados. Foto JV]
Ao fim de um mês, os noivos voltavam a fazer a “visita” aos padrinhos, levando-lhe novamente uma travessa de arroz e meia dúzia de bolos de noivo.

Hoje é raro haver boda e quando há, é servida numa pastelaria ou restaurante da cidade.

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NOTA

Ainda que realizado bastante longe da freguesia, à boda do nosso casamento, servida num restaurante-café da cidade, não faltou o tradicional bolo de noivo, oriundo da nossa aldeia.
Casamento sem este bolo, não era casamento!