sábado, 18 de setembro de 2010

Os sapateiros

(PUBLICADO NO CORREIO DO RIBATEJO DE 2 DE JULHO DE 2002)

Na recente passagem pela minha cidade natal e que aqui já referi muito superficialmente, um amigo do MEU BAIRRO disse-me que agora, depois dos padeiros, seriam os sapateiros !

Comecei a pensar nisso e a verdade é que aproveitei a sua sugestão, veremos, contudo, se a minha memória me ajuda e se consigo articular o assunto com o mínimo possível de falhas.

A arte de fazer calçado manualmente era uma actividade muito importante ainda no século XIX o que se estendeu até meados do século seguinte. A par desta existiam os moleiros, ferreiros, oleiros, marceneiros, tanoeiros, atafoneiros, abegões, correeiros, alvanéis, albardeiros etc., etc, em maior ou menor número conforme as zonas em que se inseriam.

Algumas destas actividades, senão todas, encontram-se extintas ou em vias de extinção. A evolução das coisas com o desenvolvimento da indústria, tudo transformou.

Os sapateiros distribuíam-se por todo o país, desde as cidades aos mais recônditos lugares. Também eles sofreram o ataque da indústria transformadora e foram-se aguentando nos primeiros tempos pois continuava a haver quem não dispensasse o sapatinho manufacturado. O aperfeiçoamento industrial e principalmente o preço competitivo obrigaram a balança a pender para um dos lados.

O sapateiro mais antigo no MEU BAIRRO, sempre me lembro dele, possivelmente teria sido dos primeiros moradores, tinha a sua oficina a meio da Avenida dos Combatentes, com entrada para esta e para o Pátio Frazão. A casa ainda lá se encontra, com pequenas modificações e funciona como estabelecimento comercial.

[Pátio Frazão. Foto JV]

O sapateiro, para mim na altura o único no bairro, ali veio a falecer já de idade avançada.

Era uma figura típica do MEU BAIRRO, com características físicas bem diferenciadas.

Toda a gente o conhecia por um nome que não tinha, ao seu antropónimo juntaram o da mãe, como então era vulgar.

Considerava-se e efectivamente era, tanto quanto sei, um bom sapateiro, ou melhor, um manufactor de calçado como sempre se considerou.

Trabalhava do lado direito de quem entrasse na oficina, sentando-se em pequeno mocho de madeira, de gaveta, tendo na sua frente pequena banca onde colocava a ferramenta, quando não necessária. Punha o pequeno avental de cabedal, para se proteger. Ao lado, um velho alguidar de barro era o recipiente indicado para pôr a sola de molho, para amaciar e poder bater, tornando-a mais concisa e durável. Para isso havia um seixo que se acomodava entre as pernas e sobre o qual a sola era fortemente batido com um martelo próprio, de base larga.

Penduradas na parede ou numa prateleira alta, encontravam-se por ordem as formas de madeira, de diferentes números que se utilizavam a obra nova e em determinados consertos.

Havia igualmente uma forma de ferro, de três pés, destinada a outros tipos de consertos. Nessas alturas, além de se mandarem pôr meias-solas e saltos, também se punham tombas e viras pois o calçado aguentava mais uns tempos sem necessidade de comprar outro.

A turquês especial, de bico, proporcionava o esticar conveniente do cabedal, fixado com o prego adequado. Os furos para coser eram feitos com uma sovela pela qual passavam os fios devidamente preparados, penso que com cera e em cuja extremidade lhe era colocada uma cerda. O sapateiro para poder esticar convenientemente o fio, utilizava uma protecção nas mãos, de que não recordo o nome, se o tinha, como penso. Mesmo assim as suas mãos não deixavam de ficar marcadas por fissuras provocadas pela linha.

O sapateiro utilizava vários tipos de prego, incluindo o de cobre, conforme o trabalho a executar.

Por essas alturas, não se dispensava o uso de protectores nos sapatos e as botas eram cardadas. Quando utilizadas pelos jovens, transformavam-nas em patins, sobre o cimento.

A colocação de capas no calçado de senhora era uma constante. Os saltos eram de madeira só aparecendo depois os de alumínio. Nessa altura ainda não havia as capas de plástico.

Os buracos provocados pelos pregos, eram tapados com os paus dos fósforos, aguçados e embutidos com cola própria. A faca, que se afiava com muita frequência, fazia o acerto. Depois de pregado o bocadinho de sola, era facilmente cortado pelo artista pelo sítio devido. Depois, punha-se a cera com o retoque do ferro.

Só bem mais tarde aparece outro sapateiro a abrir oficina no MEU BAIRRO, igualmente na avenida e próximo do Pátio do Parente e onde penso ainda estar uma tabacaria e venda de jornais e revistas.
Ainda que nela trabalhassem dois irmãos, infelizmente um já desaparecido há anos, era da responsabilidade do mais velho. Não vou repetir os trabalhos que aí se faziam que eram iguais aos já referidos, mas existem coisas interessantes para recordar.

As oficinas de sapateiro foram sempre locais de encontro e era esta que eu frequentava pela maior proximidade de idades. Eram ambos desportistas e guarda-redes de futebol, tendo sido o mais velho, como por várias vezes tenho escrito neste jornal, um dos melhores que Santarém já deu.

[Local de venda de Jornais e onde trabalharam dois sapateiros. Foto JV]

Comprava sempre o jornal “A Bola” e era lá que eu aproveitava para o ler. Eram muito espirituosos e brincalhões e a rapaziada era sempre bem recebida e esgotava facilmente os poucos lugares disponíveis, já que era uma pequena divisão. Quando não havia lugar disponível o pessoal ficava à porta e então era ouvir a voz firme do patrão:- Vá, tirem os taipais, quero trabalhar e não vejo nada. Então a “malta” tinha que desandar.

Na época de férias, passei muitas horas junto deles. Quando estavam bem dispostos, assobiavam e com os martelos e outras ferramentas faziam uma “orquestra”. O mais velho era mais letrado e brincava muitas vezes com a falta de conhecimentos do irmão, mas este retorquia sempre defendendo-se como podia e por vezes com tal espiritualidade que o mais velho e eu partíamo-nos a rir.

De vez em quando eu era posto à prova com perguntas de algibeira do mais velho, tais como, qual e onde era a maior profundidade do Oceano Pacífico; em que arquipélago ficava a ilha tal, etc, etc, perguntas a que de uma maneira geral não sabia responder - de vez em quando lá aparecia uma mais acessível e que acertava !

O trabalho ia dando para os dois mas não se podiam descuidar para safar o dia. Ao Sábado havia grande azáfama e trabalhavam até tarde para cumprir os compromissos. Uma freguesa que era minha vizinha era considerada a melhor pelo muito trabalho que dava. A ela, por mais trabalho que houvesse, nunca se dizia que não!

O mais velho, é apanhado numa altura em que a lei obrigava a ter a quarta classe para jogar futebol e então calhou-me a mim a prepará-lo para esse exame, apesar de já saber ler e escrever com alguma fluidez. Quanto a isso estava tudo bem mas tivemos que dar uma volta à aritmética e aos problemas mas tudo decorreu depressa e bem.

Na oficina, até em política se chegou a falar. Dizia-me o Mestre Sapateiro:- Alpiarça é uma Nação e (na altura das manifestações estudantis), estes tipos são todos os mesmos, depois de terem os cursos, querem é poleiro, mudam logo de ideias !

Depois de sair do MEU BAIRRO e iniciar a minha vida profissional, o que foi feito bem longe, sempre que passava por Santarém não deixava de fazer a visita, sendo sempre recebido com a mesma espiritualidade e com o título de senhor professor, que não era. A partir daí, nunca mudou a agulha.

Entretanto o irmão emigrou e ele arranjou emprego. Ainda vi o irmão uma vez junto da desaparecida Papelaria Silva. Foi então a conversa possível. Pouco tempo depois tive conhecimento da sua morte através deste jornal.

O mais velho vi-o pela última vez à cerca de vinte anos! Encontrei-o na estrada para Rio Maior e parei para o abraçar.

Nas horas ali passadas, acabei por aprender a pôr capas, tacões e outros pequenos trabalhos. Possuo forma de ferro, faca, ferro de bornir mas há muito que não lhe toco. Tenho saudades !


Para terminar direi que antes desta oficina trabalhar nestes termos, havia no mesmo local uma espécie de fabriqueta que só se destinava a obra nova e que passou para a traseira do prédio.

No início da avenida existiu outra fabriqueta de maior dimensão e fundada por indivíduo originário do país vizinho.

Aqui fica o que consegui recolher no sótão da minha memória.